segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O ano em que daremos férias à tropa de elite

Jornal Estado de São Paulo - 07/10/07
O ano em que daremos férias à tropa de elite
Nem tudo se perdeu: ainda há o cidadão comum
Jurandir Freire Costa*
Dois filmes brasileiros, O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, de Cao
Hamburger, e Tropa de Elite, de José Padilha, candidataram- se a representar
o Brasil na competição pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. O primeiro
foi escolhido, dividindo as opiniões divulgadas pela mídia. Deixo a quem
compete o trabalho de dizer qual deles dispõe das qualidades técnicas e
artísticas com mais chances de premiação. De minha perspectiva, importante é
discutir a imagem da cultura brasileira apresentada pelos dois. Desse
aspecto, julgo que ambos sejam extremamente bem-sucedidos.
No filme de Cao Hamburger, o Brasil dos anos 70 é visto pelo olhar de um
garoto, cujos pais são obrigados a fugir da repressão policial no período da
ditadura militar. A criança deveria ser deixada com o avô, que, nesse
entretempo, morre. Sozinho e sem ter a quem recorrer, o menino é cuidado
pela comunidade judaica, à qual o avô pertencia. No final, a mãe retorna. O
filme dá a entender que tanto ela quanto o marido haviam sido torturados e o
último havia morrido. O menino é exilado com a mãe e, ao se despedir
carinhosamente dos que o ajudaram - em especial do velho vizinho do avô,
figura central no enredo -, pensa em off que "ser exilado é ter um pai que
se atrasa tanto, tanto, que nunca chega".
Tropa de Elite, ao contrário, mostra o Brasil de hoje. Precisamente, o Rio
de Janeiro de 1997, por ocasião da visita do papa João Paulo II. O pano de
fundo é totalmente diverso: favelas, tráfico de drogas, corrupção policial
e, por fim, as entranhas do Bope, a tropa policial de elite que dá título ao
filme. Se o inferno tivesse alguma feição, com certeza seria algo semelhante
ao que o diretor nos faz ver. Nos guetos marginais das favelas, miséria
socioeconômica e miséria moral dão-se as mãos na corrida desenfreada de
delinqüentes e policiais para provar quem consegue ser mais violento.
Tortura, sanguinolência, delação, falta de escrúpulos, tudo fede à mais
estúpida desumanidade. José Padilha não poupa talento e recursos
dramatúrgicos para deixar-nos cara a cara com o que de mais macabro
produzimos em matéria de desrespeito à vida e à dignidade da pessoa.
Instituições falidas e indivíduos desencantados debatem-se como moscas
tentando escapar da maligna teia de destruição que se contrai e os tritura
de forma inexorável. É o lado do Brasil cronicamente inviável, fluindo num
jorro de imagens que comovem, dão repulsa e fazem pensar.
A pergunta é inevitável: o que nos aconteceu entre 1970 e 2007? Várias
hipóteses podem ser levantadas. A que mais facilmente vem à tona é de ordem
político-econô mica. Perdemos, afirmam alguns, as aspirações da geração 1968.
Nosso destino histórico foi entregue à sede de lucros materiais e o
resultado veio a galope: individualismo à outrance, consumismo, cinismo,
evasão pelo entretenimento e adoração drogada do próprio corpo. A tese é
discutível em alguns pontos, mas, certamente, há algo de verdade na
explicação. A decadência da política - numericamente controlada por
parlamentares que agem como mafiosos -, o endeusamento irracional da
economia e a presença intrusiva da moral do espetáculo na vida cotidiana
contribuíram, em muito, para o aparente aumento da insensibilidade em face
do bem comum ou das carências do próximo.
José Padilha, entretanto, vai adiante. Quaisquer que tenham sido as causas
da mudança, mostra ele, o efeito cultural foi além do imaginável. A
desagregação da hierarquia dos valores éticos lesou o cerne da pessoa moral,
ou seja, a capacidade que devemos ter de decidir entre o certo e o errado e
dar sentido à própria vida. Em O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, os
rivais políticos sabiam por que matavam e morriam. Os defensores da ditadura
achavam que torturar e assassinar dissidentes significava proteger o Brasil
do perigo comunista; os partidários da democracia ou do socialismo, por seu
turno, queriam restaurar o Estado de Direito democrático ou realizar a
revolução. Na bela metáfora da ida para o exílio, posta na boca do garoto,
isto fica patente. A esperança de um mundo melhor confundia-se com a
expectativa do reencontro com o pai. O reencontro, embora indefinidamente
adiado, já era presentemente vivido. Dizer que o exílio era a condição de
quem esperava por um pai que nunca chegava era dizer que depois do exílio o
pai e seus ideais poderiam vir a ser reabilitados.
Em Tropa de Elite, essa moral comum às utopias messiânicas dá lugar à mais
desoladora desistência. Policiais corruptos ou justiceiros, marginais e
estudantes usuários de drogas ilegais não sabem o que buscar, exceto
sobreviver hoje e amanhã. Agem como sonâmbulos presos num pesadelo. Tudo que
importa é abolir o tráfico ou manter o tráfico. Nenhum dos personagens
parece sentir-se exilado, pois o deserto ético transformou- se no último
horizonte de suas existências. No que dizem, palavras como violência e paz,
justiça e injustiça, autoridade e obediência, soam vazias e apenas fazem eco
a sentimentos de vingança, ressentimento, culpa ou autopunição. Criaturas
supérfluas em um mundo supérfluo.
É aqui que o corte entre os dois filmes salta aos olhos. Visto com mais
atenção, Tropa de Elite poderia ser grafado no plural, sem perda de
conteúdo. Na verdade, as supostas elites retratadas no filme são duas: a
policial e a universitária. O detalhe nada tem de irrelevante. Nele se
repete um dos mais lastimáveis fenômenos da cultura brasileira, qual seja, a
recalcitrante incapacidade de nossa autodeclarada elite de agir, de fato,
como uma legítima elite. Elite - faça-se justiça à tradição lingüística - é
o conjunto dos melhores. E os melhores, no credo democrático-humanitá rio,
são os que mais contribuem para fortalecer os ideais de igualdade, liberdade
e fraternidade. Ora, a pretensa elite nacional jamais se conduziu segundo
esses princípios, donde a relação promíscua que sempre manteve com o que a
polícia pode ter de mais abusivo e imoral.
Inicialmente, o retrógado senhoriato rural, candidato bastardo à elite, usou
a polícia para confinar a realidade dos guetos pobres nas letras de samba e
desfiles de carnaval. Foi a época de ouro das "anedotas, champanhotas" e do
famigerado "sorry, periferia". Na atualidade, a sandice cultural mudou de
tom, mas fundamentalmente continuou a mesma. A polícia foi, de novo, usada
para deixar que os mesmos guetos se convertessem em entrepostos de drogas
ilegais. Só que a criatura fugiu ao controle do criador. Os piores do andar
de baixo - como reza o preconceito - se deram conta, rapidamente, de que
podiam extorquir e explorar quanto quisessem os piores do andar de cima. Daí
para a emancipação da tutela policial o passo foi curto. Em duas ou três
décadas, os guetos marginais passaram de quitanda de drogas a centros de
treinamento intensivo em sordidez moral para policiais. A leviandade
político-social continuaria impune, não fosse um fato novo: o montante de
dinheiro circulante com o comércio de drogas permitiu que a nata da
delinqüência se armasse até os dentes para defender a prosperidade de seus
negócios. Conclusão: a sociedade brasileira, uma vez mais, tem sua agenda de
problemas comandada pela inconseqüência de uns poucos. O mesmo tipo de
grupúsculo social, que outrora insistiu em negar a indecência humana das
favelas, voltou a recorrer à truculência repressiva. Desta feita, para
conter os excessos da aberração que pôs no mundo e acabou nos tornando
reféns de bandidos e policiais corruptos.
Boa parte do desconforto provocado por Tropa de Elite vem do fato de
percebermos que o odioso ciclo do crime não tem saída, posto que se alimenta
da própria deterioração. Combater o comércio de drogas e armas com Bopes é
querer extirpar a violência com mais violência, isto é, com mais da mesma
coisa. Faz sentido discutir com seriedade se a legalização das drogas
ilegais seria um antídoto possível para a situação; insensato é persistirmos
vendo o problema pelas lentes dos habitantes desse submundo. Nesta guerra
entre aspas, o inimigo não são os infelizes do lado de lá ou do lado de cá;
o inimigo é a consciência degradada dos que consideram que, para o
populacho, favela está de bom tamanho. Ou eliminamos essa mentalidade torpe
de nossa vida cultural ou nos condenamos a suportar mais e mais carnificina.
Um dos maiores méritos de Tropa de Elite é deixar claro que a banda podre da
polícia nada mais é do que o espelho da banda podre de elites que usurparam
o direito a portar um nome ao qual jamais fizeram jus. Policiais corruptos e
brutalizados, marginais guetificados e usuários irresponsáveis de drogas
ilegais não nasceram da cabeça de Zeus. Eles são o refugo de uma ordem
sociocultural que manteve o gozo dos direitos democráticos reservado a uma
minoria civicamente analfabeta, moralmente míope e culturalmente
descomprometida com a construção de uma nação brasileira digna deste nome.
Entretanto, se a "elite" perdeu a cabeça e alma, isso não quer dizer que
tudo esteja perdido. Em uma espécie de contraponto à crua denúncia feita por
José Padilha, Cao Hamburger assinala o contraste existente entre o Brasil
dos restos humanos e o Brasil do cidadão comum. Este último cidadão, em 1970
como em 2007, apesar da pouca visibilidade social, não sucumbiu à moral da
descrença. Sua vida, na superfície, é prosaica, mas, no fundo, é o que
mantém este país de pé. Trata-se do indivíduo ordinário, que não é santo ou
herói, mas, simplesmente, alguém capaz de agir com correção e honradez, se a
urgência da questão o exigir. Sem rompante ou bravata, ele cultiva as
virtudes cívicas elementares, como apreço pelo trabalho, pela honestidade e
pela decência. Embora movido pelo egoísmo narcisista, pela tentação do
oportunismo ou pela sedução do sucesso midiático, como qualquer um de nós,
também sabe ser compassivo e solidário se assim for necessário. São esses
brasileiros que no filme de Hamburger protegem o pequeno personagem, mesmo
pondo em risco o próprio bem-estar. São eles a verdadeira tropa de elite dos
ideais democráticos de homens como frei Caneca e Joaquim Nabuco; é apostando
neles que traremos de volta os órfãos ainda exilados do sonho Brasil.
Para os desesperados, isso é idiotice sentimentalóide de quem não vê que
"este país não presta"; para os cínicos, a súmula da mediocridade piedosa.
Penso de modo diferente. Penso que esses cotidianos exercícios de respeito
pelo outro e de crença no próprio poder de mudar são a quintessência da
riqueza material, moral, intelectual e espiritual de um povo. Por meio
deles, quem sabe, chegará o ano em que daremos férias às elites e às tropas
que nos envergonham e nos privam de viver num país à altura da maioria de
nós.
Dois filmes a serem vistos e revistos; dois grandes cineastas, eles sim,
exemplos da elite que queremos ter.
* Jurandir Freire Costa, psicanalista, é professor do Instituto de Medicina
Social da UERJ e autor, entre outros livros, de A Inocência e o Vício
(Relume-Dumara, 2002) e O Vestígio e a Aura (Garamond, 2004)

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