domingo, 10 de janeiro de 2010
O Plano Nacional de Direitos Humanos, o jornalismo brasileiro e as eleições
sábado, 3 de outubro de 2009
Rio 2016
" Para tristeza dos xiitas, dos que imaginam que os outros sejam tão sabujos como eles são, a discussão em torno da candidatura do Rio para ser sede da Olímpiada de 2016 está sendo exemplar.
Digo e provo.
Eu, por exemplo, sou contra e torço para que daqui a pouco o mundo saiba que a Olímpiada será em Madri, embora deva ser em Chicago.
Terei uma grande surpresa se der Rio, a cidade incomparavelmente mais bonita entre as quatro candidatas, mas num país que nem sequer tem uma Política Esportiva, razão pela qual não merece sediar os Jogos Olímpicos.
Para não falar em superfaturamentos e coisas do gênero.
Mas esta não é posição do Sistema Globo de Rádio ou das Organizações Globo, que apoiam o Rio-2016.
Assim como a "Folha de S. Paulo", ontem, fez editorial apoiando o Rio, mas publicou, em sua primeira página, uma chamada para minha coluna, cujo título era "Nem Rio, nem Brasil".
Se o Rio vencer, não vou ficar triste, e vou me preparar para fiscalizar e cobrar todas as promessas.
Se o Rio perder, não vou ficar feliz, e vou continuar a cobrar uma Política Esportiva que permita, um dia, que o Rio seja sede da Olímpiada.
Comentário para o Jornal da CBN desta sexta-feira, 2 de outubro de 2009."
Como todos sabem, venci a seletiva para representar Goiás no Campeonato Brasileiro Sênior que acontecerá em Vitória-ES entre os dias 16 e 18 de outubro de 2009. Sei que Sozinha não vou conseguir reunir todos os recursos necessários para custear todas as despesas dessa viagem. Assim sendo, estou buscando ajuda com vocês. Acredito que se cada um colaborar com o que puder, sei que posso ir à essa importante competição. Quem puder ajudar vou ficar imensamente grata.
Os meus dados bancários são:
Caixa Econômica Federal
Agência: 2079 op. 013
Conta Poupança: 650575-7
Não esta sendo nada fácil fazer está campanha, porém a única forma que achei de participar deste campeonato. Como todos sabem, a busca por patrocínios é muito difícil e desleal, muitas das vezes que corri atrás só recebi não como forma de ajuda. Então AMIGAS (OS), porém foi à única maneira que achei para seguir em frente com meus objetivos.
Desde já, obrigado a todas (os),
Tatiana Pereira Neiva
domingo, 27 de setembro de 2009
Chaves é o Fidel de nossa época
sábado, 18 de abril de 2009
As Ações Afirmativas em Xeque
Dalmo Dalari
Os constituintes brasileiros de 1988, inspirados nos princípios proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, deram ao Brasil uma nova Constituição, tendo como um de seus objetivos fundamentais, claramente fixados no Preâmbulo, 'assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais'. Nessa linha, foi inserida no corpo da Constituição a definição dos direitos humanos como normas constitucionais, incluindo os direitos individuais e os direitos econômicos, sociais e culturais. Para garantia do efetivo exercício desses direitos, ficou estabelecido, no artigo 5, parágrafo 1, que 'as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata'. Essa disposição constitucional afirma com clareza, sem qualquer possibilidade de subterfúgios sob pretexto de interpretação, a auto-aplicabilidade das normas relativas a todos os direitos humanos. É importante lembrar que os constituintes aprovaram esse dispositivo para impedir que se reproduzisse, também quanto à nova Constituição, a maliciosa colocação de obstáculos falsamente jurídicos à efetivação dos direitos fundamentais solenemente afirmados no texto constitucional.
Essa manobra jurídica, verdadeira chicana, consistia na afirmação da necessidade de regras inferiores regulamentadoras para que as normas constitucionais pudessem ser aplicadas. Isso foi usado para impedir a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, direito assegurado pela Constituição de 1946. Alegou-se a necessidade de uma lei regulamentadora e, graças à enorme influência do poder econômico no Legislativo, impediu-se que fosse aprovada qualquer lei regulamentando as normas constitucionais sobre aquele direito. E o Executivo, sob a mesma influência, ficou omisso, como se não tivesse poder regulamentar. E assim a Constituição foi usada como fachada ilusória, destinada a calar reivindicações porque os direitos já estavam proclamados.
Hoje não é mais possível usar de subterfúgios semelhantes para impedir, entre outras coisas, a aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual 'aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos'. Essa norma, que define e garante direitos fundamentais, é auto-aplicável, por força do que dispõe o parágrafo 1 do artigo 5 da Constituição. E o referido artigo 68 não exige lei regulamentadora, sendo juridicamente perfeita a edição de decreto federal, estabelecendo regras administrativas visando dar àquela norma constitucional efetividade prática, possibilitando o gozo dos direitos. Além dessa base legal para o decreto regulamentador, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que integra a legislação brasileira desde 1992, determina que os Estados signatários, entre os quais o Brasil, adotem todas as providências necessárias para a eficácia daqueles direitos. Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que também integra a ordem jurídica positiva brasileira e determina que sejam garantidos os direitos dos povos 'cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional', como é o caso dos quilombos.
E foi justamente para a garantia efetiva dos direitos individuais e sociais dos quilombolas que o governo federal editou o decreto n 4887, de 2003, que deve ter aplicação imediata, garantindo-se a supremacia e a eficácia da Constituição.
2- As Ações Afirmativas e mais precisamente as cotas raciais
O livro é polivalente: pode ser lido tanto como humor ("rárá! não acredito que esse cara falou mesmo isso!") ou terror ("e pensar que esse homem é o diretor de jornalismo da Globo!", mas é diversão sempre garantida.
* * *
Dois trechos representativos:
Humor
... num país em que acessos a empregos públicos e vagas em instituições de ensino público são assegurados apenas pelo mérito.... (40)
Terror
A grande tragédia que as políticas de preferências e de cotas acarretam é o ódio racial. O sentimento de que o mérito não importa esgarça o tecido social. Na Índia, os registros de atrocidades contra os intocáveis eram de 13 mil nos anos 80; pularam para mais de 20 mil nos anos 90 (o número de mortos era quatro vezes maior nos 90 do que nos 80). Na Nigéria, a adoção de políticas de preferência racial levou a uma guerra civil, provocando o cisma que criou Biafra (mais tarde reincorporada), sinônimo de fome e miséria. Sri Lanka, quando da independência, era uma nação em que duas etnias, com língua e religião diferentes, conviviam harmoniosamente. Com a adoção de políticas de preferência racial, o que se viu foi uma das mais sangrentas guerras civis. Nos EUA, o número de conflitos raciais foi crescente a partir da década de 70, ano de adoção das cotas. (92)
Sinceramente, se você olha pro Brasil de hoje e vê uma meritocracia, então, sério, eu não sei nem por onde começar um diálogo. Melhor nem tentar.
Oracy Nogueira (1998) considera o preconceito brasileiro um preconceito de marca (cor) e não de origem (raça), diferente do preconceito racial norte-americano. E neste sentido teria conseqüências menos graves no que se refere às oportunidades para pretos e mulatos, se comparado ao preconceito norte-americano. O preconceito de cor no Brasil se exerce em relação à aparência, suas manifestações são definidas pelos traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, os sotaques e pode então ser classificado como um preconceito de marca. Oracy Nogueira, ao reconhecer que existe um preconceito de cor no Brasil, ainda que diferente do preconceito de raça norte-americano, avança em relação à visão de que não existiria preconceito ou discriminação em nosso país, seja racial ou de marca, visão difundida por D. Pierson ou a visão mais habitual nas Ciências Sociais brasileiras, de que o nosso problema é apenas de classe social, na visão de M. Harris.
Dos estudos destes dois autores, além de outros, segundo Antonio Sérgio Guimarães (1999:108-109), restaram cinco mal-entendidos: 1- no Brasil não existiria raça e sim cores “como se a idéia de raça não estivesse subjacente à de cor e não pudesse ser, a qualquer momento, acionada para realimentar identidades sociais”; 2- o consenso de que aparência física, e não a origem, é que determina a cor, “como se houvesse algum meio preciso de definir biologicamente as raças, e todas as formas de aparências, não fossem, elas mesmas, convenções”; 3- a impressão falsa de que, no Brasil, não se discrimina alguém com base em sua raça ou cor, “posto que não haveria critérios inequívocos de classificação de cor”; 4- a idéia da assimilação à “idéia de que os mulatos e os negros mais claros e educados fossem sempre economicamente absorvidos, integrados cultural e socialmente”, bem como “cooptados politicamente pelo establishment branco”; 5- o consenso, segundo o qual “a ordem hierárquica racial, ainda visível no País, fosse apenas um vestígio da ordem escravocrata em extinção”.
A crítica que deve ser feita a esses autores deriva da não-percepção de que raça tal como cor é um construto social e não um priori biológico. A cor, raça ou fenotipia enquanto uma construção e não um fenômeno natural é um dos mecanismos de reprodução de desigualdades sociais, ou seja, o status estamental surgido na escravidão persiste nos dias atuais. No Brasil o status de atribuição, a cor ou a origem da família, por exemplo, sobrepõe-se ao status adquirido. Portanto, como Nogueira mesmo reconhece, o preconceito brasileiro é de dupla ordem, e nesse sentido podemos contestar sua afirmação de que ele é menos grave do que o norte-americano.
Para Nogueira, por sua característica de marca, o preconceito e a discriminação em nosso país se disfarçariam em preconceito ou discriminação de classe e se confundiria com este. O autor é tributário a Tales de Azevedo, para quem as desigualdades sociais são também desigualdades de cor. Para Azevedo, a estrutura social brasileira é duplamente hierárquica: dividida em classes sociais e em status e prestígio. A hierarquia de classe seguiria os preceitos de mercado, no entanto, a de status e prestígio seria demarcada através da adscrição, em elementos como cor e origem familiar. Segundo Guimarães (1999:120),
"De modo original, Azevedo dotou as designações raciais brasileiras de um fundamento estrutural, tratando-as não mais com denominações biológicas, mas como nomes de grupo de prestígio. Explicitava, assim, o significado sociológico do velho ditado, também típico-ideal, de que “branco pobre é preto e preto rico é branco”.
Azevedo confirma assim o danoso processo de embranquecimento, não mais biológico, mas social, a que está submetido o negro brasileiro. No Brasil convivem harmoniosamente dois tipos de preconceito: o de classe e o da cor (de marca), e assim, a população marcadamente através da cor, do fenótipo ou estereótipo negro (aqui entende-se que os negros são a soma dos pardos e pretos) sofre as conseqüências duplamente. Neste sentido até mesmo Azevedo estava errado quando preconizava o fim eminente da hierarquia de status e prestígio, pelo processo de industrialização. O que ele não atentou foi que a marca (cor) no Brasil, ao englobar elementos como as características físicas, a cor de pele, o cabelo, o formato do nariz e lábios, ou seja, características propriamente fenotípicas, não é uma variável dependente do processo de desenvolvimento social. Disto decorre que, mesmo com a industrialização, o preconceito e a discriminação não foram extintos, e a maioria esmagadora dos negros continua nas camadas mais baixas da população.
Essa relação é explícita no texto de Neusa Gusmão (1995:18-19):
A historicidade concreta, enquanto ataduras das relações sociais, revela a unidade do diverso, ou seja, a etnicidade, a classe, e a raça como partes integrantes de um mesmo processo, não redutoras uma das outras. Tais categorias, ainda que específicas, são, a um só tempo, complementares e opostas entre si. Nesse sentido a integração do negro a uma sociedade multirracial e pluriétnica como a brasileira pressupõe relações vividas em termos de raça e de classe, pressupõe a identidade construída enquanto etnicidade. Na condição duplamente subalterna, o segmento negro se põe diante de si mesmo e do branco e é a partir desta condição que estabelece sua luta.
(...)
No entanto, a questão da diferença e da alteridade toma por base aspectos raciais, traços fenotípicos e aspectos culturais, inserindo-os num sistema de relações sociais e simbólicas, em que, como grupo étnico, minoria social, classe subalterna se confrontam. Nessa medida, o cotidiano revela-se como determinante do conflito e da resistência tomando por base a identidade construída na relação com a terra particular, a terra-território e, portanto, não definida pelo sistema.
Antônio Sérgio Guimarães (1999:9) define a idéia de raça na realidade brasileira ao afirmar que
‘raça’ é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário, de um conceito que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite - ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos -, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite.
Ou seja, ainda que se trate de um erro biológico falar em raças (a genética cada vez mais nos traz resultados auspiciosos a este respeito), o conceito de raça não pode ser destituído de seu verdadeiro espírito e ideologia: a princípio de preconceito e discriminação negativa. A biologia desvendou a falácia da idéia de raça, enquanto diferenças naturalizadoras, no entanto, enquanto construção social (e é isso que importa a um cientista social) e marcador diacrítico (através de traços fenotípicos), ela perdura, quer de forma negativa quer atualmente de forma positiva, como se verá abaixo. Como bem explanado por Arruti (1997:10), “Marcado e desvalorizado como aparência, na sua relação com a ‘sociedade brasileira’ o negro é agente de contaminação, fazendo com que a alteridade sirva, no seu caso, à construção de um juízo de valor político.”
Diante desta realidade, como afirma o professor Antônio S. Guimarães, somente a nomeação e a denúncia poderão contribuir para a não-naturalização desta chaga na vida social. No entanto, deve-se perceber que o preconceito e a discriminação se desenvolvem diferentemente para cada realidade e só podem ser entendidos a partir de sua própria história, daí poder se falar em um racismo à brasileira: assimilacionista e universal. Nele existe uma homologia entre hierarquia de status e raça/cor (entendida mais como um fenótipo). Segundo Guimarães, essa homologia permite que sejamos igualitaristas no plano doutrinário e hierarquizadores no plano cotidiano. O senso comum expressa no cotidiano, através do fenótipo (as percepções cromáticas e físicas), a ideologia de que cada um deve saber qual o seu lugar, como tão representado na locução “Você sabe com quem está falando?”.
Se o racismo, no Brasil, impõe uma dupla hierarquização e historicamente uma marca negativa, devemos reconhecer que atualmente, através de um processo de positivação e valoração, o orgulho de ser negro torna-se um sinal de afirmação política, bem expressa na letra de James Brown “I'M BLACK and I'M PROUD. I Feel Good” (que pode ser traduzido por: Eu sou PRETO e Eu sou ORGULHOSO. Eu sinto bem). Neste processo em que raça é entendida como construto social, cada vez mais tende haver uma discrepância entre a auto-classificação e a classificação fenotípica imposta por terceiros. A classificação emica tenderá a expressar o prestígio social. Para alguns que se classificam negros, a expressão é do sentimento de orgulho, e para outros que se classificam brancos, ou morenos (a cor-escape na realidade sócio-racial brasileira), é a forma de se incluírem na hierarquia de status e prestígio.
Nas nações multiétnicas, como no Brasil, a crítica à igualdade formal de direitos perante a lei tem-se organizado em torno do diagnóstico de que nestas nações, que durante algum tempo mantiveram grupos de pessoas subjugadas legalmente, a existência de dispositivos constitucionais e legais de combate à discriminação e ao status de inferioridade é insuficiente.
Esta conclusão permite afirmar, de acordo com o jurista Joaquim Barbosa Gomes (2001:37), que, diga-se de passagem, é o primeiro negro a ser indicado para ocupar uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Federal, que,
1o – as proclamações jurídicas por si sós (...) não são suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural de cada país, e no imaginário coletivo (...);
2o – que a reversão de tal quadro só será viável com a renúncia do Estado à sua neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao contrário, uma posição ativa, e até mesmo radical se vista à luz dos princípios norteadores da sociedade liberal clássica.
Assim sendo, a crítica à igualdade formal de direitos perante a lei tem se organizado diante da conclusão de que a desigualdade, neste caso em particular a de raça/cor, se alimenta de um poderoso e dissimulado fenômeno de discriminação que impede os negros de usufruírem das mesmas oportunidades oferecidas aos brancos. Em razão dessa assimetria, somente uma ação focada poderá promover a igualdade de acesso a todos os cidadãos; é deste imperativo que surge a defesa das ações afirmativas, entendidas como uma política que permite tratar os desiguais de maneira desigual. Esta premissa faz parte do princípio da hermenêutica diatópica, desenvolvida pelo sociólogo português Boaventura Sousa Santos (2001), segundo a qual a luta pela igualdade passa pelo reconhecimento e pelo respeito às diferenças, portanto, a busca por cidadania pressupõe o combate às desigualdades e não às identidades, pois, de outra forma, não se pode falar em cidadania e sim em tirania, uma sociedade injusta e de homens não livres, que definitivamente negam a cidadania em seus princípios basilares. Esta premissa, oriunda da filosofia aristotélica, foi definida pelo filósofo e cientista político italiano Bobbio como “regra da justiça”.
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
China, Obama e a América Latina, Venezuela
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
Somos todos Gaza VIII
7–01–2009
Muhammad Idrees Ahmad, na Electronic Intifada/6 de janeiro
Dia 29 de fevereiro do ano passado, a página da BBC na internet mostrou um dos assessores do ministro da Defesa israelense, deputado Matan Vilnai, ameaçando Gaza de “um holocausto”. Com manchete em que se lia “Israel ameaça Gaza de ‘holocausto’”, a matéria passou por nove revisões nas 12 horas seguintes. Antes do fim do dia, a manchete dizia “Militantes pró-Gaza ‘arriscam-se a sofrer um desastre’”. (Depois, a matéria continuou a ser modificada, acrescida de uma nota de desculpas). Um funcionário do governo de Israel que ameaça alguém de “holocausto” pareceu inadmissível, até para quem rotineiramente invoca o mesmo espectro para afastar qualquer crítica que apareça contra o comportamento criminoso do Estado de Israel. Mas a nova versão da manchete jogou toda a responsabilidade e a culpabilidade claramente sobre os “militantes pró-Gaza”.
Poder-se-ia argumentar que a radical alteração que a BBC promoveu na história refletiria a sensibilidade da rede ao tipo de pressão pela qual é bem conhecida a bem azeitada máquina do lobby israelense. Mas, como se pode demonstrar com vários exemplos, essa história só é excepcional porque, na primeira versão, o fato foi corretamente noticiado – e divulgou-se informação correta que poderia arranhar a imagem de Israel. A BBC autocensurou-se. Mais uma vez, censura reflexa.
Para encontrar provas do jornalismo vicioso que a BBC pratica, basta recolher amostras do noticiário sobre a guerra em curso entre Israel e Palestina que se vê hoje na internet. Em momento de conflito declarado, a cobertura da BBC acompanha invariavelmente o ponto de vista de Israel. Mais do que em qualquer outro aspecto, vê-se isso nos aspectos semânticos e no enfoque da reportagem. Mais do que o viés quantitativo (aspecto que foi meticulosamente examinado pelo Glasgow University Media Group, em estudo intitulado “Más notícias de Israel”), é o viés qualitativo que, de fato, encobre a realidade da situação. Isso se faz, quase sempre, construindo-se uma falsa paridade, um falso equilíbrio, falsificando-se uma isenção jornalística que iguala tudo, o poder, as culpas, a legitimidade, também do jornalismo. No atual conflito, tudo se repete.
“Líder do Hamas morto em ataque aéreo” foi a manchete da página da BBC, na quinta-feira. À parte a manchete que “legaliza” uma morte, são 14 parágrafos e mais a necessária referência a quatro israelenses mortos, antes da informação de que “pelo menos mais nove pessoas morreram, entre as quais quatro membros da família do líder assassinado, no bombardeio contra sua casa, no campo de refugiados de Jabaliya.”
Na verdade, houve 16 mortos, 11 dos quais crianças; 12 feridos, 5 dos quais crianças; 10 casas foram destruídas e mais 12 ficaram abaladas e ainda podem desabar. Na verdade, foi um massacre, uma carnificina.
Se o Hamas bombardeasse e matasse 28 cidadãos israelenses, dos quais 16 crianças… a cobertura seria diferente. Seria infindável. Seria o que foi a cobertura da BBC para a evacuação dos colonos israelenses legalmente instalados em Gaza, em 2005, em terra roubada. Mike Sergeant, da BBC, baseado em Jerusalém, não é homem de sentimentalismos. Então, não há civis mortos na Palestina. A tragédia da Palestina é uma massa de corpos sanguinolentos que Sergeant coroa com “é clara indicação de que os militares israelenses sabem onde estão escondidos os líderes do Hamas.”
“Israel reage ao ataque do Hamas” foi a manchete obscena do dia seguinte, na primeira página. Com a palavra Hamas sempre antecedida de “terroristas do” ou “militantes do” e sempre sobre imagens de corpos mutilados e destroços, o leitor médio facilmente aceita que não pode haver nada pior do que o Hamas. “Deu na internet” que a quarta mais poderosa máquina de matar do mundo está enfrentando um exército muito maior, mais cruel, mais poderoso, chamado Hamas, na Palestina. Depois, a BBC informou que, dentre outros “alvos”, Israel bombardeou uma mesquita e uma família que dormia em casa.
A manchete da BBC, no mesmo dia, horas mais tarde – “Gaza enfrenta ‘emergência crítica’” – foi ainda melhor. No texto, cita-se Maxwell Gaylard, coordenador do auxílio humanitário da ONU na região, que fala da extensão da crise humanitária. Depois, o alerta da Oxfam: a situação piora dia a dia; não há água potável, combustível, comida; os hospitais estão sobrecarregados e os esgotos vazam nas calçadas.
Em seguida, vem “o outro lado”: Israel declarou, informa a BBC, que “não faltam nem comida nem remédios”. Não seria difícil verificar quem mente e quem diz a verdade. Mas a investigação, nesse caso, provavelmente violaria “o reconhecido padrão de isenção da BBC.”
Há outro motivo, mais mundano, pelo qual a BBC não investigou, mas está escondido na linha do artigo.
Israel, lemos ali, “recusa-se a permitir a entrada de jornalistas internacionais em Gaza” (incluídos na proibição, é claro, jornalistas da BBC). Qualquer boa ética jornalística obrigaria a informar, na primeira linha, que ninguém sabe o que está acontecendo em Gaza. Que o jornalismo mundial alimenta-se hoje dos folhetos de propaganda distribuídos pelo exército de Israel.
O ato final da chicana vem em forma de barra lateral, na qual se contabiliza o número de Qassam disparados pelos palestinos por dia no conflito. Inacreditável, mas em matéria jornalística que se oferece como análise das consequências do bloqueio e dos bombardeios feitos por Israel, não se contabilizam os mísseis e bombas de fragmentação e de fósforo e a artilharia pesada, de Israel, que chove sobre a Palestina.
A fonte da qual a BBC recolhe suas informações isentas é o Intelligence and Terrorism Information Center, de Israel. A BBC não noticia que se trata de um instituto “privado” (um think tank), órgão do cinturão militar de propaganda israelense que, de acordo com o The Washington Post, “é diretamente ligado às lideranças militares israelenses e mantém escritório no prédio do ministério da Defesa.” Falas de palestinos, por sua vez, jamais são confiáveis e sempre aparecem entre aspas… por mais que seja facílimo verificar se são fato, ou se são propaganda comprada.
As aspas são sinal muito útil para mostrar que ali pode haver alguma mentira, algum interesse ocultado, alguma opinião pela qual a BBC não se responsabiliza. É recurso útil, se for aplicado com critério. Na BBC, não é.
Para ficarmos só num exemplo: depois da guerra do Líbano, quando a Anistia Internacional acusou os dois lados, Israel e o Hezbolá, de terem praticado crimes de guerra, a acusação feita a Israel apareceu, na página da BBC, entre aspas. A acusação feita ao Hezbolá… foi publicada sem aspas.
Assim, com manipulação sutil – e também com manipulação nada sutil – da linguagem, a BBC está ocultando de seus leitores a horrenda realidade da Palestina ocupada.
No léxico da reportagem da BBC, os palestinos “morrem”, os israelenses “são mortos” (”morrer” implica causas naturais; “ser morto” implica ser assassinado… pelo Hamas); os palestinos “provocam”, os israelenses “respondem”; os palestinos “alegam”, os israelenses “declaram”.
Além disso, escolas, mesquitas, universidade e postos de policiamento de trânsito são órgãos da “infra-estrutura do terror do Hamas”; os “militantes” “enfrentam” aviões F-16s e helicópteros Apache. O “terrorismo” é item presente no DNA dos palestinos; os israelenses “defendem-se” – sempre, todos os dias, fora das fronteiras de Israel.
Todos os debates, comecem onde começarem e sejam quais forem os fatores ou as circunstâncias, estão relacionados com a “segurança” de Israel – os palestinos não precisam de segurança. Se se fala do muro que cerca terra anexada na Cisjordânia, só se fala da “efetividade” da barreira (de segurança). Nos casos, muito raros, em que se ouça alguma voz palestina articulada, o debate é introduzido por matéria pré-editada, que visa a pô-la na defensiva. Quando tudo falha, sempre há o excelente argumento da “isenção”. Quando a BBC não consegue acomodar os fatos em imagens, então recorre aos recursos de linguagem.
E há os contextos: a violência praticada por Israel sempre é analisada em termos de “objetivos”; a violência palestina é sempre “absurda”. O leitor médio é manipulado. E a palavra “ocupação” praticamente jamais apareceu na cobertura feita pela BBC. Nas últimas 20 matérias publicadas sobre Gaza, na página da BBC, ela não aparece nem uma vez. E, se “ocupação” apareceu alguma vez, a expressão “resoluções da ONU”, essa, jamais foi ouvida ou lida. Na televisão é ainda pior, e o ponto de vista de Israel predomina absolutamente.
(…)
* Muhammad Idrees Ahmad é militante da Spinwatch.org. Seu blog está em Fanonite.org. Para ler o artigo acima na íntegra e no original, clique aqui. Tradução: Caia Fittipaldi.
O escalão superior do Hamas em Damasco, no entanto, concordou em considerar um cessar-fogo em Gaza desde que Israel prometesse não atacar e permitisse a entrega de ajuda humanitária aos cidadãos palestinos.
Depois de extensas discussões, os líderes do Hamas também aceitaram qualquer acordo de paz que pudesse ser negociado entre os israelenses e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, que também lidera a OLP, desde que fosse aprovado pela maioria dos palestinos em um referendo ou por governo de unidade eleito.
Uma vez que éramos apenas observadores, não negociadores, passamos a informação aos egípcios e eles buscaram uma proposta de cessar-fogo. Depois de cerca de um mês, os egípcios e o Hamas nos informaram que a ação militar dos dois lados e os foguetes iam parar em 19 de junho, por um período de seis meses, e que a ajuda humanitária seria restaurada ao nível normal que existia antes da retirada de Israel em 2005 (cerca de 700 caminhões por dia).
Fomos incapazes de confirmar isso em Jerusalém por causa da decisão de Israel de não admitir qualquer negociação com o Hamas, mas os lançamentos de foguetes logo pararam e houve aumento na entrega de comida, água, remédios e combustível. Ainda assim o aumento foi para cerca de 20% do nível original [de 700 caminhões]. E esse cessar-fogo frágil foi parcialmente rompido em 4 de novembro, quando Israel lançou um ataque em Gaza (fonte em português; original em inglês aqui).
Nesse ataque, Israel assassinou sete palestinos. A posição do Biscoito Fino e a Massa é de que jamais houve “trégua” nenhuma, pois não se pode falar de trégua quando uma população vive enjaulada, sem ter sequer o direito de recolher seus impostos ou controlar suas fronteiras. Mas mesmo que usemos o termo “trégua” no sentido em que a mídia, em geral, utiliza-o para se referir à Palestina Ocupada -- ou seja, “trégua” consiste em que os palestinos continuem vivendo calados, como escravos, nas suas próprias terras --, mesmo assim, o fato, a verdade, é que a trégua foi rompida por Israel, quando invadiu Gaza no dia 04 de novembro e assassinou sete palestinos, depois de meses inteiros em que o Hamas não havia lançado rojões Qassam sobre território israelense.
Stephen Zunes, especialista da Universidade de San Francisco, disse com todas as letras: foi uma enorme, enorme provocação, e agora me parece que o objetivo era mesmo fazer com que o Hamas rompesse o cessar-fogo. Amigo leitor: nada, nada, nada disso foi relatado pela mídia ocidental. É como se a invasão do 04 de novembro não tivesse acontecido.
Por que Israel escolheu o dia 04 de novembro para romper a trégua? Ora, caro leitor, lembre-se do que acontecia nos EUA no dia 04 de novembro. Não é difícil adivinhar. O obviedade
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
O Falso argumento na questão das cotas
Liuiz Carlos Azenha
Eu passei a me interessar pela África graças à Conceição Oliveira, uma das editoras-itinerantes deste site. Desde então mergulhei nos assuntos africanos. Com grande prazer acabo de ler "A Manilha e o Libambo", de Alberto da Costa e Silva.
No Brasil, neste momento, trava-se um debate sobre as cotas para negros. Há os que querem que elas sejam impostas pelo governo federal. E os que as rejeitam completamente, argumentando que as cotas deveriam ser sociais, não raciais, e que não devemos "racializar" o debate, que essa "racialização" é um importação indevida de modismos dos Estados Unidos e que só vai aprofundar a cisão racial no Brasil.
Eu diria a vocês que essa "racialização" já existe. E que muitos dos que se opõem a qualquer tipo de ação afirmativa na verdade acabam defendendo a manutenção de um status quo injusto, em que a mulher negra está na escala mais baixa da pirâmide que tem no topo os homens brancos.
Pessoalmente acho que as cotas não devem ser impostas de cima para baixo, pelo governo federal, como se fossem a cura para todos os males. Acredito em ações afirmativas de baixo para cima, adotadas por instituições públicas e privadas, no feitio do que já fazem diversas universidades brasileiras.
Elas enfrentam um combate duro patrocinado pelos neocons brasileiros, que se reúnem em torno da revista Veja e da TV Globo -- de Ali Kamel a Reinaldo Azevedo, de Demétrio Magnoli a Diogo Mainardi. É um país curioso, o Brasil. Na matriz, os neocons são um fenômeno dos anos 80. Mas aqui, na filial, só ganharam algum status já no século 21. É mais uma demonstração do atraso de nossa elite.
Aliás, não é de hoje que os intelectuais prestam serviço a causas pouco nobres, fornecendo os argumentos para a manutenção de injustiças sociais como a escravidão. O próprio Alberto da Costa e Silva encerra o seu livro com um capítulo que deveria ser leitura obrigatória. Segue um trecho:
No fim do século 17, ao se falar de escravo, pensava-se em negro. Ficara para trás o tempo em que nas listas da escravaria do sol da Europa tinham destaque árabes, armênios, berberes, búlgaros, circassianos, eslavos, gregos e turcos, e em que os negros eram minoria nas populações escravas das Américas. Quase duzentos anos antes, já se tornara incomum encontrar-se nos espaços dominados pela Europa um escravo branco que tivesse vindo de terras cristãs ou, melhor, que fosse europeu.
[...]
Além de negros, não era invulgar, no Portugal quinhentista, encontrarem-se em cativeiro árabes, berberes e turcos. Havia também, ainda que em número bem menor, indianos, malaios, chineses e ameríndios. Estes últimos eram poucos, porque adoeciam com facilidade ou, deprimidos, se suicidavam. Quanto aos asiáticos, a Coroa lhes limitava a importação, para não ocuparem um espaço que seria melhor empregado, nas naus da Índia, com pimenta, canela, cravos, sedas, lacas e outras mercadorias mais valiosas.
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Tal qual sucedera, a partir do século 10, no mundo islâmico, o negro foi-se tornando, ao avançar o Seiscentos, no sul da Europa e na maior parte das Américas, o escravo por excelência. De um "outro" entre os "outros", passou a ser considerado uma espécia humana distinta, inferior à branca e predestinada a serví-la. Repetiram-se entre os europeus -- e não como enredo de farsa, mas novamente como urdidura de tragédia -- todos os argumentos que os árabes haviam esgrimido para justificar a escravidão dos pretos. Ressuscitou-se, possivelmente a partir da versão muçulmana, o falso anátema de Noé contra os filhos de Cam -- falso porque lançado claramente contra apenas um deles, Canaã, e não contra Cuxe, de quem descenderiam os africanos. Noé os amaldiçoara: os seus descendentes seriam escravos e negros -- e escravos porque negros.
Foram reforçando-se, um a um, os estereótipos a partir dos quais se construiria toda uma ideologia racista: os pretos eram curtos de inteligência, indolentes, canibais, idólatras e supersticiosos por natureza, só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão.
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Esse tecido ideológico vestia a necessidade que tinha a expansão européia de mão-de-obra abundante. Já no começo do Quinhentos, em muitas partes da América, os aborígenes diminuíam rapidamente de número, vítimados pelas guerras e razias, pelo excesso de trabalho e pelas doenças trazidas pelos conquistadores, e se mostravam difíceis de escravizar, ou porque podiam facilmente refugiar-se nas funduras dos sertões e ali resistir pelas armas, ou porque se abrigavam sob a proteção dos jesuítas e de outras ordens da Igreja. As regiões balcânicas e à volta do mar Negro, até então a maior fonte de escravaria para a Europa e o mundo islâmico, tinham sido fechadas aos europeus pelos otomanos, na metade do Quatrocentos.
[...]
Em contraste, as costas da África subsaariana apareciam como uma fonte quase inesgotável de escravos.
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Pelo que escreve o autor do livro, não houve falta de gente a fornecer os argumentos necessários para justificar a escravidão. Assim como não faltam, hoje, aqueles que acreditam que basta investir na educação para superar o verdadeiro abismo de renda que existe entre os homens brancos e as mulheres negras na sociedade brasileira.
Quando eles dizem que é um risco "racializar" o debate estão brandindo um argumento falso. Por mais que a gente disfarce a sociedade brasileira é "racializada", com os homens brancos no topo e as mulheres negras na base da pirâmide de renda, de acordo com números do IPEA. Estou entre os que acreditam que o estado brasileiro deve fazer algo a respeito.
http://www.viomundo.com.br/opiniao/o-falso-argumento-na-questao-das-cotas/
segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
Ótima entrevista com Lula
Tradução Júlio Pegna.
Lula: “Meu ego não aumentou”Luiz Inácio Lula da Silva tem razões para estar de bom humor. Após seis anos no poder, acaba de bater novo recorde de popularidade: doravante, 70% dos 196 milhões de Brasileiros são “lulistas”. E o chefe de Estado tem ainda outros motivos de satisfação, por exemplo, o crescimento do PIB – ultrapassará os 5% no Brasil em 2008 – ou a volta à 1ª divisão do lendário clube de São Paulo, Corinthians Paulista, do qual ele é torcedor. À véspera da visita de Nicolas Sarkozy ao Rio de Janeiro, o antigo menino de rua que se tornou operário, sindicalista, dirigente do Partido dos Trabalhadores (PT), depois chefe de Estado, concedeu, em Brasilia, uma entrevista exclusiva ao L’Express. Num tom informal.
.Senhor presidente, sua trajetória política, como a de Barack Obama, desafia os códigos da vida política tradicional. Está, a seu ver, entre os presidentes “fora dos padrões”?
Penso que sim. O mundo está cheio de chefes de Estado que, a princípio, não poderiam ser eleitos. Nicolas Sarkozy, por exemplo, não tinha o apoio de Jacques Chirac; tornou-se presidente da República. Barack Obama, acreditavam os especialistas, seria sucessivamente derrotado por Hillary Clinton, depois por Mc Cain. O que, diga-se de passagem, demonstra que os especialistas também se enganam. E se enganam muito. Na América Latina, a maioria dos atuais dirigentes possuem perfis que seriam impensáveis há vinte anos atrás.Isso tudo decorre, do meu ponto de vista, da queda do muro de Berlim e do vazio ideológico que se seguiu no mundo inteiro. De repente, as coisas deixaram de ser escritas com antecedência. A esquerda teve que se redefinir. E ela se reapropriou do direito de pensar. Vimos surgir fenômenos como Hugo Chavez, na Venezuela, Evo Morales – um índio! – na Bolivia, ou ainda Fernando Lugo no Paraguay. Quanto a mim, fui derrotado 3 vezes até vencer em 2002. Que o Brasil superasse seus preconceitos e trouxesse um operário ao centro do Estado parecia, há apenas 15 anos, muito improvável.
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Em que o surgimento de personalidades “diferentes” pode representar um progresso para o mundo?A política tornou-se algo mais efervescente, mais dinâmica, motivadora e interessante. Não está mais apenas concentrada nas mãos de pessoas que, no fundo, pensam da mesma forma. Assistimos a debates mais agudos sobre o papel do Estado, sosbre governar, sobre as escolhas da sociedade. Com a crise atual, a evolução da geografia política é inexorável. É positivo para as populações do mundo inteiro.
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Quando criança, o senhor conheceu a fome, a miséria, trabalhava nas ruas, morava em lugares rústicos. Como tudo isso influenciou seu modo de governar?
Mesmo que eu desejasse seria incapaz de governar o Brasil do jeito de meus antecessores – intelectuais, advogados, empresários. Desde minha posse estava claro dentro de mim: se falhar, me dizia, não será apenas o cheque mate de Lula, mas o de uma idéia. Qual idéia? Aquela segundo a qual os trabalhadores brasileiros, portanto a maioria dos habitantes deste país, têm o direito de eleger um dos seus ao cargo de presidente da República. Em resumo, não tenho direito ao cheque mate. O que dirão se eu falhar? Mais ou menos o que os comentaristas políticos disseram à respeito de Walessa: “Ele não sabe governar, não tem nível, ele não sabe fazer.” Obama se encontra na mesma situação. Se não conseguir resultados em um ano, o mundo inteiro cairá sobre suas costas. Por isso estou otimista. Porque ninguém além dele tem tanto interesse em dar certo.
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Sua mãe, Dona Lindu, foi fundamental na sua vida. Qual a coisa mais importante que ela lhe deixou?
O caráter, eu acho. Minha mãe possuia uma coragem e uma lucidez que se encontram em poucas pessoas. Em 1953, quando ela descobriu que meu pai tinha outra família, foi encontrá-lo, numa manhã, pra lhe dizer que estava indo embora. Ela era analfabeta. Tinha oito filhos. E, mesmo assim, ela foi. Ela sempre dizia: “Um ser humano nunca pode perder o direito de andar de cabeça erguida.” Nós, seus filhos, fomos trabalhar. Um trabalhava numa mina de carvão, outro vendia sardinhas, um terceiro virou barman. Eu tinha 7 anos. Com meu irmão Chico, fomos vender laranja e amendoim nas ruas. Assim aprendi a importância da familia, que está, por sinal, no coração da minha atuação politica. Minha mãe também tinha outra frase, que dizia: “Trate sempre as pessoas com respeito, ela dizia, pois só assim você será respeitado”. Este é o seu legado. O resto, tudo foi conquistado. Nunca recebi nada de graça. Nunca.
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A luta contra a pobreza é, desde o início, prioridade em seu governo, particularmente através do programa Bolsa Familia [que consiste em dar às familias mais necessitadas a quantia mensal de 70 reais, ou 22 euros, por criança que frequenta a escola, a fim de incentivar a educação]. Quais são os resultados?
A meu ver, o Bolsa Familia é o mais importante mecanismo de distribuição de renda jamais aplicado. Atualmente, 11 milhões de familias se beneficiam deste sistema, e digo que não tem nada de eleitoral. A prova: a incumbência de sua gestão é das mães, que não são necessariamente do meu entorno político.Desde os anos 1950, os mais brilhantes economistas do Brasil nos explicavam que era preciso gerar crescimento para distribuir as riquezas. Primeiro faremos o bolo, eles diziam, depois, quando crescer, vamos distribuir as fatias... Eu não sou economista, mas acredito que não é necessário esperar assar o bolo. Se damos um pouco de dinheiro a quem não tem nada, não comprarão carros ou produtos importados, mas o que eles realmente precisam: feijão, arroz, leite, farinha, meias e sapatos. Como resultado, o Bolsa Familia dinamizou consideravelmente as comunidades rurais do Brasil. E os efeitos colaterias são impressionantes. Ontem, estava na região semi-árida do Nordeste onde a UNICEF premiou 259 comunidades cuja mortalidade infantil caiu a menos de 20 por 1000 em seis anos! O mais bonito é que ajudar os pobres é a coisa mais barata que existe. Quando um homem de negócios consegue um empréstimo de 1 bilhão num banco público, ele sai reclamando. Chega um pobre. Você lhe dá 70 reais e ele sai agradecendo ao bom Deus.
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Na contramão de todos estes avanços, a criminalidade é uma praga no Brasil. A ponto de, por exemplo, muitos estrangeiros não ousarem visitar o Rio de Janeiro...
Não procuro minimizar o problema. Mas é preciso dizer que existe, na mídia, uma predileção por este assunto. Às vezes, um crime fica 10 dias seguidos na manchete de um jornal da TV! O fato se transforma numa crescente apoteótica que, por sua vez, alimenta um pavor no mundo todo. Mas vamos mais além: é importante que todos, no Brasil, compreendam que se contentar em enviar a policia às favelas não fará reduzir a violência. É preciso, ao contrário, voltar a dar esperanças à juventude e traçar perspectivas de futuro. O programa governamental ProUni, por exemplo, permitiu criar 214 escolas técnicas profissionais (a comparar com os 140 estabelecimentos deste tipo inaugurados no século passado), enquanto o programa ProJovem visa a reescolarização de 4,5 milhões de jovens. Provemos uma ajuda mensal de 120 reais [38 euros] àqueles que concordam aprender uma nova profissão para se reinserir na sociedade. Estas políticas públicas acabarão tendo um impacto. Quando a criançada de 14-15 anos perceber que existe um futuro para eles neste país, o narcotráfico, o crime organizado e a violência diminuirão.
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Falemos um pouco da Amazônia. Por que o desmatamento continua sob seu governo?
É preciso, antes de mais nada, lembrar que a Amazônia é tão grande quanto a Europa. E que não havia praticamente nenhum organismo de controle quando assumimos. É preciso, igualmente, entender que 23 milhões de pessoas vivem na Amazônia. E que estas pessoas têm, também, o direito a ter um automóvel, um aparelho de televisão, uma geladeira. E que elas tem o direito de trabalhar. A questão toda é garantir o crescimento econômico sustentável desta região. No início de dezembro, lancei nosso plano sobre mudanças climáticas, que servirá, sem dúvida, de modelo a outros países emergentes. Nos comprometemos em reduzir o desmatamento em 40% até 2010. Se atingirmos nossos objetivos, as emissões de CO2 serão reduzidas em 4,8 bilhões de toneladas até 2017. Aliás, saiba que o Brasil, em princípio, não tem qualquer necessidade de desmatar para plantar soja ou cana de açúcar: além dos 360 milhões de hectares da Amazônia nosso país dispõe de outros 400 milhões de hectares de terras produtivas, onde é possivel plantar sem causar danos ao meio ambiente.
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Nicolas Sarcozy chega ao Rio de Janeiro dia 22 de dezembro, em visita oficial. E 2009 será o Ano da França no Brasil. O que lhe vem à mente quando falamos da França?
Penso imediatamente na Revolução Francesa. E no potencial comercial ainda inexplorado entre nossos países, principalmente na área da defesa: estamos muito interessados pelos aviões Rafale e pelo submarino nuclear francês. Ainda, gostaria que a ponte sobre o Oiapoque entre o Brasil e a Guiana Francesa esteja terminada antes do final do meu mandato. Mas descobrí que a burocracia francesa é igual à brasileira. No meio que frequento, todos gostam de ir a Paris, admiram a cultura, a arte e os vinhos franceses...
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E falam de futebol?
Não. Não é assunto da alta sociedade, mesmo que haja muita coisa a dizer sobre os encontros França-Brasil. Ganhamos de vocês nas semifinais do Mundial de 58. Depois, vocês nos eliminaram em 1986, em 1998 e em 2006. Devo dizer que Zidane é o atleta mais perfeito que pude ver ao longo da minha vida.
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O número 1 do mundo, então?
Não, impossível. Pelé será sempre o número 1. Imbatível, inigualável, eterno.
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Falemos da crise. Como, a seu ver, ela afetará seu país?
Alguns economistas falam de uma queda do crescimento de 5% para 0,5%. Eles são muito pessimistas. A bem da verdade, o Brasil é o hoje o pais mais bem preparado para enfrentar a crise. Nossa dívida pública representa apenas 36% do PIB. O montante de nossas reservas é superior à nossa dívida externa. Nosso sistema financeiro é extremamente moderno. Nosso mercado interno está em plena expansão. E o Estado continuará a investir em infra-estrutura, energia e urbanismo. Dito isto, está na hora de regulamentar o sistema financeiro internacional. Não podemos mais viver sob a influência dos yuppies das finanças que vendem pedaços de papel sem produzir um lápis, uma caneta. E ganhando verdadeiras fortunas porque atingiram objetivos teóricos que nada tem a ver com o sistema produtivo.
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Que recordação o senhor pretende deixar, após o fim de seu mandato, em dezembro de 2010?
Não me faço este tipo de pergunta. Sabe, vivi cinquenta e sete anos sem ser presidente e, depois de ter sido, não me deixo influenciar pela função. Garanto que meu ego não cresceu nem um milímetro sequer. O que cresceu, em contrapartida, foram minhas responsabilidades e minha jornada de trabalho. Quando trabalhava na indústria, sabia que começava às 8 para terminar às 18 horas. Tinha meu sábado e meu domingo. A imprensa não me conhecia. Era um homem tranquilo. Hoje, não tenho horário fixo, nem sábados, nem domingos. Então, depois de 2010 farei o que recomenda nosso cantor popular Zeca Pagodinho na música Deixa a vida me levar: deixarei a vida me levar.
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
O supremo presidente Gilmar
O crime organizado veio para ficar. Não é mais franja, efeito colateral, exceção. Está no centro de todo o sistema. O caso Daniel Dantas está apenas mostrando que a extensão do domínio é muito maior do que imaginávamos. Não porque todos os jornalistas, empresários, juízes e parlamentares que hoje estão, em coro, construindo a absolvição de Dantas estejam diretamente vinculados a ele.Nem todos estão. Mas, indiretamente, qualquer brecha que torne longínquamente provável o desvendamento de crimes de colarinho branco atinge a todos eles. Estão todos com medo. Ninguém sabe se os "seus" próprios telefonemas foram grampeados.
A fórmula é simples:
1. Criam-se factóides em torno de grampos. Caso típico é a capa da Veja. Até agora nem ela, nem Gilmar Mendes, nem Demóstentes Torres apresentaram um dado sequer de que o grampo foi da ABIN.
2. Criado o factóide, deflagra-se o processo legal-administrativo, seja através do STJ ou do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
3. Consumado o movimento, os jornais voltam a defender escutas e procedimentos mais radicais. Livram a cara, depois de terem cumprido sua missão.
4. O mesmo vale para o equipamento de grampo da ABIN. Ampla cobertura ao que Nelson Jobim falou. Depois, aquele desaforo de afirmar que o equipamento pode ser usado para grampo, desde que acoplado a um equipamento próprio para grampo.
6. Finalmente, com a história do agente aposentado do SNI que ajudava na operação, a mesma coisa. Monta-se um movimento para “criar jurisprudência” através dos jornais. Algo insólito, mas entra jornal e colunista afirmando taxativamente que a Operação foi comprometida. Há toda uma discussão por trás, em que esse movimento atua como advogado de uma das partes. Depois de atingido o objetivo, ouça-se a outra parte, mas aí sem risco de comprometer a tese principal: livrar Daniel Dantas.
Resta saber se nós, aqui da arquibancada, temos alguma capacidade de articulação e reação. Eu duvido que tenhamos. Reina a sensação de que nada mais pode ser feito, de que só nos resta assistir passivamente a esse desfile interminável de vitórias do crime organizado.Estou convencido de que esta sensação é planemente justificada. Não se pode fazer abolutamente nada, mesmo. Falamos para não enlouquecer. Mas é só isso. A democracia já era. Sobrou só o discurso. Oco.
Entrevista do Jornal o Popular de Goiânia
Potogenes- Ele participou sim da operação, mas existe um dispositivo legal que prevê a figura do colaborador eventual. Mas ele ficou pouco tempo na operação, é um analista e desempenhou o papel dele a pedido nosso. A todo tempo ele cumpria expediente na sede da PF.
E quanto às suspeitas de que a Polícia Federal grampeou ilegalmente o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes?
Posso lhe afirmar que a reportagem que foi lançada nos órgãos de imprensa afirmando que houve escuta ilegal e que as suspeitas recaem nos agentes que integraram a Satiagraha é mentirosa. Todas as escutas que fizemos foram autorizadas e nosso sistema é inclusive auditado. Todas nossas escutas estão de posse da Justiça Federal e são controladas pelo Ministério Público Federal. O próprio órgão de imprensa que deu o furo de reportagem não demonstrou o áudio. Cadê o áudio? Só aparece uma transcrição? Cadê o áudio? E envolve duas pessoas importantes da República, o presidente do STF e o senador Demóstenes Torres. Como que lança o nome de duas pessoas dessa forma e não aparecem as provas?
Na sua opinião, houve uma inversão no debate sobre as investigações?
Hoje, o que se discute é a conduta dos investigadores. Não se discute mais o investigado principal. E nem os fatos que porventura estão em torno dele, que são mais graves que a figura central dele. E o próprio investigado tem noção disso, senão não estaria fazendo toda uma estratégia de trabalho nesse sentido. Estava já voltando o foco para o investigado e os fatos em torno dele e aí se criou outro fato. E acredito que outros virão.
Como se viu saindo da condição de herói, que prendeu pessoas poderosas suspeitas de corrupção, e de repente passou a ser atacado e ter o trabalho duramente questionado?
(...) Dá um pouco de tristeza de ver algumas posições sem muita clareza e sem muita explicação para o que se pretende. Mas, por outro lado, são atitudes que cada vez mais me enchem de vontade de persistir no trabalho de combater a corrupção. Na Satiagraha, fiquei uma semana trancado numa sala à base de biscoito e café. Fiquei com seqüelas da operação, passei alguns dias gago e com perda temporária de memória. Mas, se me dediquei muito naquela ocasião, agora vou trabalhar dobrado.
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Primeiro foi o ministro da Casa Militar, a diretoria da ABIN e outros setores militares que desmentiram o tal grampo sem prova da Veja, grampo aliás interessante já que só servia de elógio aos grampeados, diga de passagem duas figuras das mais soterradoras: Gilmar Mendes e Demosténes Torres. Depois foi a vez da empresa americana que fabricou a tal amelta negar de forma peremptoria que a mesma pudesse fazer grampos. Agora foi a perícia que também confirma o grampo não é possível. EIs que a chicana continua, e o nome deles os melhores advogados do Dntas é o ministro Gilmar Mendes e o ex-ministro do STF Nelson Jobim e o ex-delegado Marcelo Itagiba, veja o que eles disseram nas últimas horas:
o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e também o da CPI , Marcelo Itagiba, apareceram por sites e foram parar no mesmo "JN", para dizer que o laudo "é insuficiente para isentar" a Abin e anunciar até "perícia própria" da maleta.
No dia anterior, Jobim já havia usado argumento novo. Agora é a participação de agentes da Abin na Operação Satiagraha.
"Inicialmente se dizia que a Abin não tinha participado desse episódio [o grampo dele com Demóstenes], depois se afirmou que a Abin fez um apoio técnico, depois se revelou que teve uma participação mais ampla de 52 [agentes da Abin], agora se informa que são 56 diante dos 22 agentes federais [da PF] que atuaram. Então vem a pergunta: quem é que teve uma atuação principal nesse episódio? A Abin ou a Polícia Federal?", questionou Mendes.
Nós ainda tivemos uma outra revelação: o diretor-geral da PF não sabia que a Abin tinha este grau de participação. Então vem a pergunta: o que está ocorrendo nessa seara? A Abin está agora substituindo a PF? E ela pode fazê-lo? A meu ver, não. Isso é ilegítimo. É uma situação de descontrole, de desgoverno? É preciso que nós respondamos a essas perguntas."
ENFIM QUE DÁ DESANIMO DÁ.
domingo, 6 de julho de 2008
Enfim uma opinião mais sensata sobre o desfeixo do caso Ingrid
JANIO DE FREITAS
Uma demonstração especial
De repente, foi como se todos os outros reféns, com uma exceção, evaporassem nas brumas da selva colombiana |
O número de reféns retidos pelas Farc varia, conforme quem o cita, de 200 a 800. Basta-nos citar centenas, porque a barbaridade não se altera. De repente, foi como se todos esses, com uma exceção, evaporassem nas brumas da selva. O mundo foi levado por uma campanha competente a abolir de suas emoções centenas de seres e concentrar-se, entre comovido e revoltado, na suposição de uma só pessoa merecedora de tudo para resgatá-la do seu pequeno inferno.
Ao governo francês, participante mais notório do episódio, não faltam motivos para ser aplaudido, por sua "ação decisiva" dita pela própria Ingrid Betancourt, nem outros para lamentá-lo. Mesmo que não se considerem possíveis utilizações políticas e propagandísticas por parte do presidente Sarkozy, como antes por Jacques Chirac, seu motivo para abstrair do "decisivo" esforço centenas de seres humanos é quase torpe: o casamento remoto com um francês, com decorrentes direitos de cidadania francesa que o divórcio não retirou. Não estava em questão o ser humano, mas um estatuto jurídico francês aplicado, por acaso, a Ingrid Betancourt, como poderia sê-lo a outro refém que, então, seria o beneficiário da "ação decisiva".
Se, nas centenas de reféns, não constam outras duplas nacionalidades francesas, azar o deles. Ou melhor, eles nem existem nesse capítulo senão em referências tão escassas e sucintas quanto possível: "os outros reféns", "os demais reféns". A rigor, Sarkozy e o governo francês não foram originais. Seguiram a conduta mais comum nos governos, entre militares e na diplomacia. Os Estados Unidos só mostraram interesse nos três mercenários resgatados com Ingrid Betancourt. Mas, com ou sem Bush, os modos norte-americanos são bem conhecidos, ao passo que temos o vício histórico de ver a França com outros olhos, apesar da guerra da Indochina, dos horrores da guerra na Argélia, da guerra do Suez, contemporâneas de muitos de nós.
A manipulação sobre a manipulação. A família de Ingrid Betancourt cumpriu com grau exemplar o seu papel de batalhar por todos os meios para trazê-la de volta. O que daí resultou foi um clima ficcional que jogou com as emoções públicas, transformando-as em força de pressão que contribuiu muito para a exceção Ingrid Betancourt, com a conseqüente irrelevância em que foram postas as centenas de demais cativos. Ingrid Betancourt tinha todo o alfabeto das hepatites, úlcera rompida, todos os piores efeitos da leishmaniose, anemia, inação muscular, corria risco de morte, logo teria apenas semanas de vida, um pouco mais e, se não fosse libertada de imediato, não resistiria a mais do que dias. "Estou muito bem", disse ela sobre seu estado, ao chegar a Bogotá. "Estou muito bem", repetiu em Paris, "e daqui a uns dias vou fazer alguns exames, mas só os de rotina".
Sejam 200, 500, 800, os reféns relegados são também pais, mães, filhos. Não haverá entre eles quem possa ter até maior grandeza do que Ingrid Betancourt? Ou seriam todos, como seres humanos, merecedores do descaso com que foram e estão sendo tratados, temas só de referências obrigatórias e furtivas? O propalado esmagamento das Farc é posto em dúvida por sua capacidade de manter centenas de reféns, o que implica muitas dificuldades, e controlar parte imensa do território colombiano. Nessas circunstâncias, as centenas de cativos que não contam com governos e com manipulações da opinião pública merecem, ao menos, uma palavra de solidariedade.