sábado, 18 de abril de 2009

As Ações Afirmativas em Xeque

Esta semana tem sido de muitos debates e muitas lutas para aqueles que defende uma país mais justo do ponto de vista étnico-racial. A cada dia, mais e mais ataques as questões quilombolas e as cotas raciais, duas das muitas modalidades de ações afirmativas.
1- A Luta Quilombola continua forte e firme apesar dos contrários. Para fortalecer aos apoiadores reproduzo abaixo, artigo publicado pelo renomado e respeitado jurista e professor Dalmo Dalari. Em linhas gerais ele reafirma a posição de vários outros grandes juristas e antropólogos, inclusive este que vos fala, que disse algo na mesma direção em dissertação de mestrado:
Direitos constitucionais dos quilombos
Dalmo Dalari
Os constituintes brasileiros de 1988, inspirados nos princípios proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, deram ao Brasil uma nova Constituição, tendo como um de seus objetivos fundamentais, claramente fixados no Preâmbulo, 'assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais'. Nessa linha, foi inserida no corpo da Constituição a definição dos direitos humanos como normas constitucionais, incluindo os direitos individuais e os direitos econômicos, sociais e culturais. Para garantia do efetivo exercício desses direitos, ficou estabelecido, no artigo 5, parágrafo 1, que 'as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata'. Essa disposição constitucional afirma com clareza, sem qualquer possibilidade de subterfúgios sob pretexto de interpretação, a auto-aplicabilidade das normas relativas a todos os direitos humanos. É importante lembrar que os constituintes aprovaram esse dispositivo para impedir que se reproduzisse, também quanto à nova Constituição, a maliciosa colocação de obstáculos falsamente jurídicos à efetivação dos direitos fundamentais solenemente afirmados no texto constitucional.

Essa manobra jurídica, verdadeira chicana, consistia na afirmação da necessidade de regras inferiores regulamentadoras para que as normas constitucionais pudessem ser aplicadas. Isso foi usado para impedir a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, direito assegurado pela Constituição de 1946. Alegou-se a necessidade de uma lei regulamentadora e, graças à enorme influência do poder econômico no Legislativo, impediu-se que fosse aprovada qualquer lei regulamentando as normas constitucionais sobre aquele direito. E o Executivo, sob a mesma influência, ficou omisso, como se não tivesse poder regulamentar. E assim a Constituição foi usada como fachada ilusória, destinada a calar reivindicações porque os direitos já estavam proclamados.

Hoje não é mais possível usar de subterfúgios semelhantes para impedir, entre outras coisas, a aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual 'aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos'. Essa norma, que define e garante direitos fundamentais, é auto-aplicável, por força do que dispõe o parágrafo 1 do artigo 5 da Constituição. E o referido artigo 68 não exige lei regulamentadora, sendo juridicamente perfeita a edição de decreto federal, estabelecendo regras administrativas visando dar àquela norma constitucional efetividade prática, possibilitando o gozo dos direitos. Além dessa base legal para o decreto regulamentador, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que integra a legislação brasileira desde 1992, determina que os Estados signatários, entre os quais o Brasil, adotem todas as providências necessárias para a eficácia daqueles direitos. Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que também integra a ordem jurídica positiva brasileira e determina que sejam garantidos os direitos dos povos 'cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional', como é o caso dos quilombos.

E foi justamente para a garantia efetiva dos direitos individuais e sociais dos quilombolas que o governo federal editou o decreto n 4887, de 2003, que deve ter aplicação imediata, garantindo-se a supremacia e a eficácia da Constituição.

2- As Ações Afirmativas e mais precisamente as cotas raciais
Esta para ser votado a qualquer momento em caráter terminativo na Comissão de Constituição e Justiça do Senado o Projeto que institui o Programa de Ações Afirmativas nas Universidades públicas federais brasileiras com viés tanto social quanto étnico-racial. Como sempre, os não racistas - o que por inferência lógica coloca-nos todos os que pensam diferentes na categoria de racistas - de novo fazem sua chicana e utilizam de todos os meios para convencer da desnecessidade da adoção de cotas com caracteres étnicos-raciais. De novo foi uma semana daquelas na Globo com direito a matérias diárias no jornal Nacional mostrando a perversidade deste instrumento e dos riscos que a cordial e democrática sociedade brasileira passará a correr.Interessante nenhuma palavra a respeito dos casos bem sucedidos, maioria absoluto nas mais de 50 !!! universidades que já adotaram esse programa.
Nada a se estranhar pois um dos principais diretores da Globo, que atende pelo nome de Ali Kamel é dos mais ferenhos críticos da política de cotas em sua modalidade étnico-racial (aliás, além de criticar as cotas raciais o Sr. Ali "NÃO SOMOS RACISTAS" Kamel - como ficou conehcido após publicar sua importante obra literária - é também bastantre conhecido, no meio jornalístico pela arte de agradar os chefes e defenestrar qualquer espírito independente do jornalismo global). A respeito desta figura nefasta façamos um parêntese e recorramos ao ótimo Alex Castro:
"Na mesma linha de Senhor dos Anéis e Crônicas de Nárnia, o romance de fantasia Não Somos Racistas, de Ali Kamel, se passa em uma terra mítica e utópica, onde não existe racismo e impera a mais estrita meritocracia.
O livro é polivalente: pode ser lido tanto como humor ("rárá! não acredito que esse cara falou mesmo isso!") ou terror ("e pensar que esse homem é o diretor de jornalismo da Globo!", mas é diversão sempre garantida.
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Dois trechos representativos:
Humor
... num país em que acessos a empregos públicos e vagas em instituições de ensino público são assegurados apenas pelo mérito.... (40)
Terror
A grande tragédia que as políticas de preferências e de cotas acarretam é o ódio racial. O sentimento de que o mérito não importa esgarça o tecido social. Na Índia, os registros de atrocidades contra os intocáveis eram de 13 mil nos anos 80; pularam para mais de 20 mil nos anos 90 (o número de mortos era quatro vezes maior nos 90 do que nos 80). Na Nigéria, a adoção de políticas de preferência racial levou a uma guerra civil, provocando o cisma que criou Biafra (mais tarde reincorporada), sinônimo de fome e miséria. Sri Lanka, quando da independência, era uma nação em que duas etnias, com língua e religião diferentes, conviviam harmoniosamente. Com a adoção de políticas de preferência racial, o que se viu foi uma das mais sangrentas guerras civis. Nos EUA, o número de conflitos raciais foi crescente a partir da década de 70, ano de adoção das cotas. (92)
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Sinceramente, se você olha pro Brasil de hoje e vê uma meritocracia, então, sério, eu não sei nem por onde começar um diálogo. Melhor nem tentar.
Na novela das oito Duas Caras, da Rede Globo, a personagem Gislene, interpretada por Juliana Alves (atriz negra), "uma jovem politicamente engajada e contrária a qualquer forma de preconceito", apareceu durante vários capítulos lendo o livro Não Somos Racistas , de Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da (isso mesmo!) Rede Globo. Como bem disse a apostila Cultura e Cidadania 2008 do Educafro, às vezes fica difícil de saber onde termina o Jornal Nacional e começa a novela.
Para excelentes notícias e artigos como esses recomendo enormemente o link abaixo, do blog-site de Alex Castro, que direto dos EUA onde é professor tem sido um dos mais destacados defensores das Ações Afirmativas no Brasil. Para ver mais: http://www.interney.net/blogs/lll?cat=2280
Ainda a esse respeito Luiz Carlos Azenha (mais um que pediu o boné na Globo por não aceitar os métodos Kamelisticos):
"Pessoalmente acho que as cotas não devem ser impostas de cima para baixo, pelo governo federal, como se fossem a cura para todos os males. Acredito em ações afirmativas de baixo para cima, adotadas por instituições públicas e privadas, no feitio do que já fazem diversas universidades brasileiras.Elas enfrentam um combate duro patrocinado pelos neocons brasileiros, que se reúnem em torno da revista Veja e da TV Globo -- de Ali Kamel a Reinaldo Azevedo, de Demétrio Magnoli a Diogo Mainardi. É um país curioso, o Brasil. Na matriz, os neocons são um fenômeno dos anos 80. Mas aqui, na filial, só ganharam algum status já no século 21. É mais uma demonstração do atraso de nossa elite. Aliás, não é de hoje que os intelectuais prestam serviço a causas pouco nobres, fornecendo os argumentos para a manutenção de injustiças sociais como a escravidão." ver mais http://www.viomundo.com.br/opiniao/o-falso-argumento-na-questao-das-cotas/
Poderia aqui citar vários e vários links que "confirmam" a tese de Kamel (http://marjorierodrigues.wordpress.com/2009/04/04/o-apartheid-do-elevador/), mas seria enfadonho e desnecessário, pois qualquer brasileiro em sã consciência já viu, foi vitima ou praticou pré-conceitos e racismos. Aliás é o próprio brasileiro que assume isso perante a diversas pesquisas. Mas como nós os brasileiro somos mais cordiais e aprendemos que não somos racistas, não assumimos praticar tais atos, mas sim ter presenciado tais atos. O que levou um astuto (e nem precisava ser) pesquisador estrangeiro em nosso país a exclamar: o brasileiro não é racista e nem preconceituoso mas todos os seus amigos, parentes e vizinhos o são. Seria engraçado senão fosse trágico e um retrato de propaganda como as feitas pelo Sr. Kamel e companhia ilimitada.
Mas como nem todos podemos comungar da ilha de fantasia e dos romances kamelisticos. Vale a pena algumas palavras a respeito do conceito de raça e de seus usos, bem como da ideia de Democracia Racial (e não mito - por favor não fiquem por ai repetindo que no Brasil existe um Mito da Democracia Racial. O que existe no Brasil é uma falácia de Democracia Racial e não mito, pois ao contrário do que faz crer o senso comum, mito não é algo mentiroso ou fantasioso. E nossa Democracia Racial é fantasiosa e mentirosa).
Vejamos então um pouco (a seguir trechos da minha dissertação, onde discuto este tema):
A palavra étnico-racial, e sua efetividade enquanto bandeira de luta do Movimento Negro, é pertinente do ponto de vista da luta político-social para a efetivação da eqüidade entre os diferentes grupos étnicos, formadores da nacionalidade brasileira. Diante da centralidade dessa definição, será feita uma digressão a respeito da idéia de raça no contexto brasileiro e da aplicação de políticas de caráter afirmativo.
Oracy Nogueira (1998) considera o preconceito brasileiro um preconceito de marca (cor) e não de origem (raça), diferente do preconceito racial norte-americano. E neste sentido teria conseqüências menos graves no que se refere às oportunidades para pretos e mulatos, se comparado ao preconceito norte-americano. O preconceito de cor no Brasil se exerce em relação à aparência, suas manifestações são definidas pelos traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, os sotaques e pode então ser classificado como um preconceito de marca. Oracy Nogueira, ao reconhecer que existe um preconceito de cor no Brasil, ainda que diferente do preconceito de raça norte-americano, avança em relação à visão de que não existiria preconceito ou discriminação em nosso país, seja racial ou de marca, visão difundida por D. Pierson ou a visão mais habitual nas Ciências Sociais brasileiras, de que o nosso problema é apenas de classe social, na visão de M. Harris.
Dos estudos destes dois autores, além de outros, segundo Antonio Sérgio Guimarães (1999:108-109), restaram cinco mal-entendidos: 1- no Brasil não existiria raça e sim cores “como se a idéia de raça não estivesse subjacente à de cor e não pudesse ser, a qualquer momento, acionada para realimentar identidades sociais”; 2- o consenso de que aparência física, e não a origem, é que determina a cor, “como se houvesse algum meio preciso de definir biologicamente as raças, e todas as formas de aparências, não fossem, elas mesmas, convenções”; 3- a impressão falsa de que, no Brasil, não se discrimina alguém com base em sua raça ou cor, “posto que não haveria critérios inequívocos de classificação de cor”; 4- a idéia da assimilação à “idéia de que os mulatos e os negros mais claros e educados fossem sempre economicamente absorvidos, integrados cultural e socialmente”, bem como “cooptados politicamente pelo establishment branco”; 5- o consenso, segundo o qual “a ordem hierárquica racial, ainda visível no País, fosse apenas um vestígio da ordem escravocrata em extinção”.
A crítica que deve ser feita a esses autores deriva da não-percepção de que raça tal como cor é um construto social e não um priori biológico. A cor, raça ou fenotipia enquanto uma construção e não um fenômeno natural é um dos mecanismos de reprodução de desigualdades sociais, ou seja, o status estamental surgido na escravidão persiste nos dias atuais. No Brasil o status de atribuição, a cor ou a origem da família, por exemplo, sobrepõe-se ao status adquirido. Portanto, como Nogueira mesmo reconhece, o preconceito brasileiro é de dupla ordem, e nesse sentido podemos contestar sua afirmação de que ele é menos grave do que o norte-americano.
Para Nogueira, por sua característica de marca, o preconceito e a discriminação em nosso país se disfarçariam em preconceito ou discriminação de classe e se confundiria com este. O autor é tributário a Tales de Azevedo, para quem as desigualdades sociais são também desigualdades de cor. Para Azevedo, a estrutura social brasileira é duplamente hierárquica: dividida em classes sociais e em status e prestígio. A hierarquia de classe seguiria os preceitos de mercado, no entanto, a de status e prestígio seria demarcada através da adscrição, em elementos como cor e origem familiar. Segundo Guimarães (1999:120),
"De modo original, Azevedo dotou as designações raciais brasileiras de um fundamento estrutural, tratando-as não mais com denominações biológicas, mas como nomes de grupo de prestígio. Explicitava, assim, o significado sociológico do velho ditado, também típico-ideal, de que “branco pobre é preto e preto rico é branco”.
Azevedo confirma assim o danoso processo de embranquecimento, não mais biológico, mas social, a que está submetido o negro brasileiro. No Brasil convivem harmoniosamente dois tipos de preconceito: o de classe e o da cor (de marca), e assim, a população marcadamente através da cor, do fenótipo ou estereótipo negro (aqui entende-se que os negros são a soma dos pardos e pretos) sofre as conseqüências duplamente. Neste sentido até mesmo Azevedo estava errado quando preconizava o fim eminente da hierarquia de status e prestígio, pelo processo de industrialização. O que ele não atentou foi que a marca (cor) no Brasil, ao englobar elementos como as características físicas, a cor de pele, o cabelo, o formato do nariz e lábios, ou seja, características propriamente fenotípicas, não é uma variável dependente do processo de desenvolvimento social. Disto decorre que, mesmo com a industrialização, o preconceito e a discriminação não foram extintos, e a maioria esmagadora dos negros continua nas camadas mais baixas da população.
Essa relação é explícita no texto de Neusa Gusmão (1995:18-19):
A historicidade concreta, enquanto ataduras das relações sociais, revela a unidade do diverso, ou seja, a etnicidade, a classe, e a raça como partes integrantes de um mesmo processo, não redutoras uma das outras. Tais categorias, ainda que específicas, são, a um só tempo, complementares e opostas entre si. Nesse sentido a integração do negro a uma sociedade multirracial e pluriétnica como a brasileira pressupõe relações vividas em termos de raça e de classe, pressupõe a identidade construída enquanto etnicidade. Na condição duplamente subalterna, o segmento negro se põe diante de si mesmo e do branco e é a partir desta condição que estabelece sua luta.
(...)
No entanto, a questão da diferença e da alteridade toma por base aspectos raciais, traços fenotípicos e aspectos culturais, inserindo-os num sistema de relações sociais e simbólicas, em que, como grupo étnico, minoria social, classe subalterna se confrontam. Nessa medida, o cotidiano revela-se como determinante do conflito e da resistência tomando por base a identidade construída na relação com a terra particular, a terra-território e, portanto, não definida pelo sistema.
Antônio Sérgio Guimarães (1999:9) define a idéia de raça na realidade brasileira ao afirmar que
‘raça’ é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário, de um conceito que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite - ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos -, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite.
Ou seja, ainda que se trate de um erro biológico falar em raças (a genética cada vez mais nos traz resultados auspiciosos a este respeito), o conceito de raça não pode ser destituído de seu verdadeiro espírito e ideologia: a princípio de preconceito e discriminação negativa. A biologia desvendou a falácia da idéia de raça, enquanto diferenças naturalizadoras, no entanto, enquanto construção social (e é isso que importa a um cientista social) e marcador diacrítico (através de traços fenotípicos), ela perdura, quer de forma negativa quer atualmente de forma positiva, como se verá abaixo. Como bem explanado por Arruti (1997:10), “Marcado e desvalorizado como aparência, na sua relação com a ‘sociedade brasileira’ o negro é agente de contaminação, fazendo com que a alteridade sirva, no seu caso, à construção de um juízo de valor político.”
Diante desta realidade, como afirma o professor Antônio S. Guimarães, somente a nomeação e a denúncia poderão contribuir para a não-naturalização desta chaga na vida social. No entanto, deve-se perceber que o preconceito e a discriminação se desenvolvem diferentemente para cada realidade e só podem ser entendidos a partir de sua própria história, daí poder se falar em um racismo à brasileira: assimilacionista e universal. Nele existe uma homologia entre hierarquia de status e raça/cor (entendida mais como um fenótipo). Segundo Guimarães, essa homologia permite que sejamos igualitaristas no plano doutrinário e hierarquizadores no plano cotidiano. O senso comum expressa no cotidiano, através do fenótipo (as percepções cromáticas e físicas), a ideologia de que cada um deve saber qual o seu lugar, como tão representado na locução “Você sabe com quem está falando?”.
Se o racismo, no Brasil, impõe uma dupla hierarquização e historicamente uma marca negativa, devemos reconhecer que atualmente, através de um processo de positivação e valoração, o orgulho de ser negro torna-se um sinal de afirmação política, bem expressa na letra de James Brown “I'M BLACK and I'M PROUD. I Feel Good” (que pode ser traduzido por: Eu sou PRETO e Eu sou ORGULHOSO. Eu sinto bem). Neste processo em que raça é entendida como construto social, cada vez mais tende haver uma discrepância entre a auto-classificação e a classificação fenotípica imposta por terceiros. A classificação emica tenderá a expressar o prestígio social. Para alguns que se classificam negros, a expressão é do sentimento de orgulho, e para outros que se classificam brancos, ou morenos (a cor-escape na realidade sócio-racial brasileira), é a forma de se incluírem na hierarquia de status e prestígio.
Nas nações multiétnicas, como no Brasil, a crítica à igualdade formal de direitos perante a lei tem-se organizado em torno do diagnóstico de que nestas nações, que durante algum tempo mantiveram grupos de pessoas subjugadas legalmente, a existência de dispositivos constitucionais e legais de combate à discriminação e ao status de inferioridade é insuficiente.
Esta conclusão permite afirmar, de acordo com o jurista Joaquim Barbosa Gomes (2001:37), que, diga-se de passagem, é o primeiro negro a ser indicado para ocupar uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Federal, que,
1o – as proclamações jurídicas por si sós (...) não são suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural de cada país, e no imaginário coletivo (...);
2o – que a reversão de tal quadro só será viável com a renúncia do Estado à sua neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao contrário, uma posição ativa, e até mesmo radical se vista à luz dos princípios norteadores da sociedade liberal clássica.
Assim sendo, a crítica à igualdade formal de direitos perante a lei tem se organizado diante da conclusão de que a desigualdade, neste caso em particular a de raça/cor, se alimenta de um poderoso e dissimulado fenômeno de discriminação que impede os negros de usufruírem das mesmas oportunidades oferecidas aos brancos. Em razão dessa assimetria, somente uma ação focada poderá promover a igualdade de acesso a todos os cidadãos; é deste imperativo que surge a defesa das ações afirmativas, entendidas como uma política que permite tratar os desiguais de maneira desigual. Esta premissa faz parte do princípio da hermenêutica diatópica, desenvolvida pelo sociólogo português Boaventura Sousa Santos (2001), segundo a qual a luta pela igualdade passa pelo reconhecimento e pelo respeito às diferenças, portanto, a busca por cidadania pressupõe o combate às desigualdades e não às identidades, pois, de outra forma, não se pode falar em cidadania e sim em tirania, uma sociedade injusta e de homens não livres, que definitivamente negam a cidadania em seus princípios basilares. Esta premissa, oriunda da filosofia aristotélica, foi definida pelo filósofo e cientista político italiano Bobbio como “regra da justiça”.
Para ler mais recomendo os links abaixo, uma mostra dos mais de 70 posts sobre esta temática, publicado aqui no Blog.

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