terça-feira, 6 de novembro de 2007

Pegou geral

Belo artigo escrito pela Ângela Faria para o caderno Pensar do estado de Minas e que me foi enviado pelo amigo Ricardo. Sobre o filme Tropa de Elite, dois pequenos comentários (aliás bastante rasteiros - na verdade não são nem comentários, apenas alguns pensamentos livres):

1- poucos filmes nos últimos tempos permitiram tamanho debate, já recebi dezenas de artigos pró e contra o filme. Na correria dos últimos tempos não tive tempo de ler todos, mas quando tiver mais tempo pretendo coloca-los todos aqui para que cada um leia e chegue a suas conclusões. Nesse sentido o filme já é um belo sucesso. Outra coisa já perceberam como esse filme é comentado nas ruas, por pessoas que normalmente não vão ao cinema; ainda que endeusando o Bope o que é ruim, o filme esta sendo visto e comentado o que é bom;
2- a positivação do Bope, aponta para um problema, aliás comentei isso em um e-mail com outro amigo, na verdade mais do que endeusar um Estado violento- o que é verdade, diante dessa imensa sensação de insegurança- para mim o mais lamentável não é o facismo tão apontado por todos, mas o ato de que o brasileiro médio, em grande parte influenciado pela mas media desaprendeu a ter pensamento crítico e o pior não consegue perceber uma das magias do cinema que é a metáfora.


PENSAR
Pegou geral
Documentário de estréia de José Padilha, Ônibus 174 revela os equívocos do Bope, grupo policial exaltado pelo público de Tropa de elite. Nem fascista, nem radical de esquerda, diretor se revela atento observador da sociedade brasileira
Ângela Faria

O capitão Nascimento ficou muito bem no cinema, mas o seu Batalhão de Operações Especiais (Bope) – que muita gente anda endeusando depois de assistir ao longa-metragem de ficção Tropa de elite – protagonizou, nas telas, um dos maiores fiascos da história da segurança pública do Rio de Janeiro. Está tudo no documentário Ônibus 174, lançado em 2002 e dirigido pelo mesmo José Padilha que transformou em febre nacional o policial interpretado por Wagner Moura.

Tropa de elite caiu na boca do povo, provoca muita polêmica na imprensa e, calcula-se, foi visto por 11 milhões de pessoas depois que DVDs pirateados invadiram o país, antes mesmo do lançamento "oficial". Ônibus 174 conquistou prêmios importantes, como os conferidos pela 26ª Mostra Internacional de São Paulo e Festival de Havana, teve público razoável para um documentário, mas nem de longe provocou a comoção de Tropa, embora seja uma espécie de "pai" do capitão Nascimento.

José Padilha teve a idéia de fazer um filme de ficção sobre a violência brasileira, sob o enfoque do policial, justamente ao entrevistar, há sete anos, alguns dos protagonistas da desastrada operação realizada no Rio. Foi assim que nasceu a tropa saudada aos gritos de "caveira!" (símbolo do Bope) pela platéia carioca, no início de outubro, no Festival do Rio. Capitão Nascimento e seus homens enfiam sacos de plástico na cabeça de suspeitos, em busca de informações sobre chefes do tráfico; não hesitam em arrancar as calças de um dos garotos do "movimento", ameaçando estuprá-lo com uma vassoura. Treinados para a guerra, os "homens de preto" se consideram o antídoto à corrupção de colegas e à incompetência do sistema policial. Acima da lei, têm aval do governo para executar operações-limpeza pelas favelas afora.

Tanta valentia no filme de ação; fracasso retumbante no documentário. O Bope cenográfico mobiliza platéias no país inteiro, mas o Bope de carne e osso, há sete anos, perdeu feio. Passo a passo, Ônibus 174 registra o fracasso da tropa de elite e das autoridades fluminenses, sob o comando do então governador Anthony Garotinho, para solucionar um assalto a ônibus no Rio de Janeiro, em junho de 2000. A refém Geísa Gonçalves e o assaltante Sandro do Nascimento perderam a vida na desastrada ação.

Depois de tentar, sem sucesso, assaltar os passageiros da linha 174, Sandro fez 11 reféns. Por quase cinco horas, prendeu alguns deles no coletivo estacionado no Jardim Botânico, na Zona Sul carioca. José Padilha expôs os erros da polícia com clareza desconcertante. Assistir a seu filme de estréia é verdadeiro "choque de realidade" diante da catarse provocada por Tropa de elite. Há quem veja no Bope da ficção, violento e acima da lei, a tábua de salvação para o caos da segurança pública brasileira. Na vida real, as coisas não funcionaram assim. Quem duvida pode conferir Ônibus 174.

NA CABEÇA

Tecnicamente, ensinou o documentário, seria recomendável o atirador acertar a cabeça de Sandro enquanto ele conversava com policiais e se exibia para as câmeras de TV. Entretanto, telefonema de "autoridade superior" para o coordenador da operação abortou a idéia. Temia-se o impacto da cena nos lares do Brasil e do exterior: meio quilo de massa encefálica projetada nas janelas do ônibus. Durante entrevista a Padilha, uma das reféns lembra "detalhe" que poderia fazer a diferença: por várias vezes, o bandido pôs o braço que segurava a arma e a cabeça para fora do coletivo. "Por que não acertá-lo naquele momento?", questionou a moça.






Os negociadores de elite erraram feio, permitindo que Sandro, levando Geísa, deixasse o veículo para andar pelas ruas, tentando escapar do cerco policial. "Você nunca deve deixar uma situação estática se tornar móvel", ensinou outro entrevistado, Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais, co-produtor do documentário e roteirista de Tropa de elite.

O resultado da ação daquela tarde, definitivamente, faria o capitão Nascimento se entupir com seus calmantes tarja preta. O atirador Marcelo dos Santos pôs a arma a dois palmos da cabeça do seqüestrador, errou dois tiros, mas atingiu o rosto da refém. Ao pressentir a movimentação do policial do Bope, Sandro apertou o gatilho. Enquanto caía com Geísa no chão, o assaltante fez os disparos que mataram a moça. A refém Luana Belmont se pergunta: não seria mais lógico presumir que Sandro, instintivamente, por reflexo, apertaria o gatilho? Não. Pelo menos para um policial entrevistado no documentário. Segundo ele, a tendência seria o rapaz atirar no agressor, usando a moça como escudo. A leiga Luana estava certa. "Infelizmente era o dia de a gente perder", restou ao "caveira" lamentar.

O desfecho da tragédia, porém, ainda estava por vir. Ileso, o assaltante foi levado por homens do Bope para o hospital. Chegou lá morto, asfixiado. Sandro escapou da Chacina da Candelária, em que oito meninos de rua foram executados por policiais militares em 1993, no Centro do Rio. Mas os rapazes do Batalhão de Operações Especiais completaram o serviço, lembrou o sociólogo Luiz Eduardo Soares no documentário. Indiciados por homicídio qualificado (com intenção de matar), prevaleceu a tese da defesa de que os três agentes da lei sufocaram o rapaz, drogado e agitado, ao tentar imobilizá-lo dentro da viatura. Ricardo de Souza Soares, Flávio do Vale Dias e Márcio Araújo David foram absolvidos pela Justiça. Ônibus 174 foi lançado pouco antes do julgamento.

OUTRO LADO

O documentário é uma espécie de "lado B" de Tropa de elite. O diretor José Padilha tem repetido à exaustão que não avaliza os métodos violentos de seu capitão protagonista, explica que apenas deu voz ao policial, personagem raro na cinematografia nacional, repleta de marginais como Pixote, Zé Pequeno e Lúcio Flávio. Ouvi-lo, com seus erros e acertos, é crucial se se quiser, mesmo, construir uma política de segurança eficaz. Mas, com sua opção preferencial pelo Bope, o cineasta foi acusado de fazer filme "fascista", que avaliza a tortura como método de ação, e propor a polícia violenta como alternativa à banda podre.

O curioso é que, ao lançar Ônibus 174, o mesmo Padilha foi chamado de "radical de esquerda" por mostrar ao Brasil que existia um Sandro Nascimento de carne e osso. Ainda garotinho, Sandro viu a mãe morrer, esfaqueada na birosca que dava sustento à família. Traumatizado, fugiu da casa da avó, virou menor abandonado, morava com os garotos de rua assassinados por policiais militares na Chacina da Candelária. Preso várias vezes, conheceu o inferno carcerário carioca, seja no tenebroso instituto de "reeducação" Padre Severino, seja nas celas mais desumanas de delegacias da Cidade Maravilhosa. Analfabeto, viciado em drogas, falava em ser artista. Teve suas quatro horas e meia de fama em 12 de junho de 2000, até ser empurrado para a patamo pela equipe do Bope, enquanto a multidão gritava "lincha!".

Padilha é, mesmo, um cineasta polêmico: seu documentário foi solicitado pelos advogados da defesa e da acusação dos policiais que mataram Sandro. Pedido negado. Requisitado pela juíza, o filme foi exibido durante o julgamento.

Nem fascista, nem radical de esquerda, o diretor carioca é atento observador do Brasil. Corajosamente, pôs usuários de droga da Zona Sul no centro do tiroteio que consome vidas de policiais e traficantes, chamando os bem-nascidos à responsabilidade na guerra travada nas favelas. O cinema só tem a ganhar com os Nascimentos de Padilha – Sandro e o capitão –, metáforas dessa democracia hipócrita que preserva a "segurança social" à base de saco plástico na cabeça de bandido, treina policial de elite (mal pago) como cão de guerra, garante "direitos humanos" de bacana e faz do camburão o tribunal do júri para marginal pobre.

Antes de eleger o capitão Nascimento herói do ano, vale a pena embarcar nesse Ônibus. Cá para nós, Tropa de elite faz merecido sucesso, mas quem pegou geral foi o documentário de José Padilha. Naquele dia, foi o Bope quem pediu para sair.

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