Nação Palmares
Está no ar a homenagem da Agência Brasil pelo Dia da Consciência Negra, resultado dos meus dois últimos meses de trabalho por lá, entre agosto e outubro - junto com mais um bocado de gente boa como André Deak, Aloisio Milani, Rodrigo Savazoni, Yasodara Córdova, Pedro Biondi e muitos outros que não sei se têm blog. Apreciem, critiquem. Nos próximos dias, falamos mais a respeito.
Salve Zumbi, salve o povo do Brasil, que é o maior país negro fora da África...
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Palmares virou muitos
O Brasil demorou um século para reconhecer, na Constituição, direitos das comunidades negras às suas terras. E setores conservadores ainda empregam pretextos de cunho racial para fazer valer seus interesses econômicos
Por Spensy Pimentel
Busca de reconhecimento |
Em 20 de novembro de 1695 morreu Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, depois da destruição da comunidade pelos bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho. Por muito tempo, a história ensinada nas escolas brasileiras não tinha muito mais a dizer sobre a reação dos negros à escravidão. Trezentos e doze anos depois, a data é Dia da Consciência Negra e o Brasil já não vê a causa de Zumbi como ato isolado. Palmares virou muitos.
Levantamentos já aceitos pelo governo federal mencionam mais de 3.500 comunidades remanescentes de quilombos espalhadas por 24 estados da Federação – só não há registros no Acre, Roraima e Distrito Federal. Pesquisadores estimam haver mais de 5 mil. O termo “quilombo” tem origem no dialeto banto, de Angola – algo como “acampamento guerreiro”. Palmares, antes de ser designado quilombo, foi antes república e mocambo – outra palavra banto, para “abrigo” ou “esconderijo”.
É consenso hoje que quilombo define não só as comunidades formadas por escravos fugidos, mas também as que reuniam alforriados, e casos em que os negros ganharam terras como herança ou prêmio por seu trabalho. Havia ainda antigos escravos que se tornaram posseiros após a conquista da liberdade. Em comum, qualquer que seja o caso, há o abandono a que esses grupos foram submetidos, a discriminação e falta de cidadania.
Uma das formas de começar a corrigir essa dívida social seria a regularização das terras pertencentes a essas comunidades. Um século depois da Abolição, a Constituição de 1988 passou a assegurar, no artigo 68 das disposições transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Glória Moura, professora da Universidade de Brasília e, à época, integrante do Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte, assistiu aos esforços pela inclusão dos direitos dos quilombolas na Carta. “Apenas seis constituintes se reconheciam como negros entre os mais de 500”, lembra.
Desde 1988 pouco mais de 100 comunidades tiveram terras tituladas. Até 2002, a falta de consenso sobre o modo como executar essas ações travou o processo. No plano federal, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, assumiram o tema. E, sob pressão do movimento negro, estados como Pará, Maranhão, Bahia, São Paulo e Mato Grosso também estabeleceram legislação e concederam títulos a comunidades. No final de 2003 o presidente Lula assinou o decreto 4.887, que incumbiu ao Incra a responsabilidade pela titulação, mediante estudo antropológico sobre as áreas reivindicadas. À Fundação Palmares cabe cadastrar as comunidades assim auto-reconhecidas.
Grupos de direita e ligados a “proprietários” reagiram. Em 2004 o então PFL, hoje DEM, foi ao Supremo Tribunal Federal com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o decreto de Lula, com o argumento de que não seria possível fazer regulamentação da Constituição por decreto.
Em setembro uma manifestação no Congresso reuniu mais de 500 representantes quilombolas de todo o país. Cobravam agilidade nas titulações e protestavam contra projeto do deputado Valdir Colatto (PMDB-SC), que propõe anular o decreto de Lula. “A dívida histórica com os negros é do governo, não de proprietário particular”. Para ele, o decreto de Lula é racista: “Hoje todo mundo convive harmonicamente. O governo está criando conflitos”. A Advocacia-Geral da União tem argumentos para derrubar as ações contra o 4.887. Para o consultor-geral da União, Ronaldo Vieira Jr., o artigo sobre os quilombos é auto-aplicável, não precisa de regulamentação por se tratar da garantia de um direito: “O que os opositores propõem é uma forma de interpretação que serve para protelar”, afirma. Esse debate oculta o principal conflito: as atuais normas consideram como terras a serem tituladas não só as que são ocupadas hoje pelas comunidades, mas também aquelas das quais elas tenham sido expulsas ou retiradas mediante má-fé ou engodo no passado.
Para se ter uma idéia do que isso significa: Linharinho, no município de Conceição da Barra (ES), é uma comunidade quilombola com terras reconhecidas, tituladas apenas parcialmente. São 140 hectares, mas segundo o Incra haveria direito a 9,5 mil. Hoje a maior parte disso está coberta por eucaliptos da multinacional Aracruz Celulose. A empresa alega que comprou legalmente as terras. Contudo, depoimentos das pessoas mais velhas da comunidade, recolhidos durante o estudo antropológico, mostram que houve casos em que intermediários ludibriaram posseiros, pagando preço de banana. Quem se negou a sair teria sido expulso.
lamento Miúda: “Tinha cultura, tinha religião. Nosso remédio era da mata. Acabou tudo, passaram o correntão. A nossa religião foi acabando também” |
Na raiz, a terra
“Eles fraudaram muita terra. Alguns tiraram na marra. Dizem que vendeu, mas como? Davam um dinheiro que lá na cidade não dava pra comprar nem um mês de comida, e aqui eles tinham tudo”, diz Elda Maria dos Santos, uma das líderes de Linharinho. As famílias têm contato até hoje com parentes que saíram há pouco mais de 30 anos, quando a Aracruz chegou, e foram parar na capital Vitória, na favela Morro de São Benedito. Estudos da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) mostram que a região norte do estado, conhecida como Sapê do Norte, abrigou dezenas de comunidades surgidas de quilombos criados por escravos fugidos e também a partir de terras cedidas por fazendeiros no final do século 19. A economia da região era baseada na farinha de mandioca. Os quilombolas mantinham intenso comércio do produto – como, aliás, até hoje. Ali, o Porto de São Mateus foi durante parte do período colonial o mais importante ponto de chegada de escravos.
Na memória de Miúda, como Elda é conhecida, nomes dos antigos líderes negros e dos antigos poderosos da região provam a presença africana muito anterior à dos eucaliptos: “Tinha Nego Rugério, Constância de Angola, Preto do Congo, Viriato Canção de Fogo, Benedito Meia Légua, Beneditinho e outros, povo nosso que era escravo. Tem muito negro enterrado embaixo desses eucaliptos”. Elda era pequena quando chegaram as empresas que começaram a plantar eucalipto, mas recorda o impacto das mudanças. “Os negros pescavam, trabalhavam, viviam juntos, faziam festas. Tinha cultura, tinha religião. Nosso remédio era da mata. Acabou tudo, passaram o correntão. A nossa religião foi acabando também.”
Sua avó Aurora, para organizar as ladainhas nas casas da comunidade, precisava de licença do delegado de polícia – da qual Elda ainda guarda uma cópia em casa. A repressão levava os negros a disfarçar seus cultos – comparados por Miúda ao candomblé baiano. “Teve que passar pra vários nomes, Mesa de Santa Bárbara, Mesa de Santa Maria, por causa dos brancos, os donos do poder”, relata. Ela lamenta o fato de pouco haver sobrado dessas tradições, sufocadas pelo preconceito. Nas cerimônias, os espíritos dos ancestrais, chamados de “nagores”, voltavam para curar e aconselhar a comunidade.
A principal perspectiva aberta com a iminência da recuperação das terras é fortalecer a vida em comunidade. “Aqui é um ajudando o outro. No sábado eu vou colocar a roça pra fulano, então vamos lá; de tarde é a grande festa”, diz. “Somos alegres, dançamos, batucamos, fazemos nossos tambores, e sempre vamos viver assim. E com o nosso território demarcado vamos ter mais alegria, terra pra trabalhar, água... Vai ser uma grande festa.”
Reparação
Por assumir essa perspectiva de reparação histórica, processos de titulação acionaram conflitos antes ocultos. E não apenas em áreas rurais, mas também no meio urbano ou litoral. Em Marambaia (Ilha Grande, RJ), ou Alcântara (MA), há imbróglios capitaneados pela própria União em terras de quilombos das quais a Marinha não abre mão. Mas na maioria dos casos o que está em jogo é o valor da terra.
O Quilombo Família Silva, em bairro nobre de Porto Alegre, resiste há décadas a condomínios e prédios de luxo que avançam sobre quase dois terços de seus 4 hectares. Em Caçandoca (Ubatuba, SP), até obter sua documentação, famílias tiveram casas queimadas em meio à guerra da especulação imobiliária. No meio rural o motivo, já conhecido no processo de reforma agrária e de demarcação das terras indígenas, é o preço das terras agrícolas. “A lógica do uso da terra pelos quilombolas é estranha ao agronegócio. O problema dos supostos proprietários é o valor da terra”, diz o antropólogo Sandro Silva, coordenador do trabalho da Ufes que resultou na identificação dos territórios quilombolas. “A titulação desestabiliza uma sociedade conservadora, escravocrata. No século 19 o Estado pegava dinheiro dos proprietários para capturar quilombolas.”
As projeções sobre as terras a serem tituladas espantam setores mais conservadores. O Gabinete de Segurança Institucional, ligado à Presidência da República e controlado pelos militares, já produziu pareceres em que questiona titulação de áreas de onde comunidades foram expulsas no passado. Linharinho, por exemplo, em avaliação do GSI, deveria permanecer mesmo com os 140 hectares que a comunidade ocupa hoje, a despeito dos relatos de violência.
Não há estatísticas seguras sobre os quilombolas. Não se sabe exatamente onde estão, quantos são (estimativas variam entre 1,5 milhão e 2 milhões) nem quais as suas carências – aliás, constatação estendida a quase todo tipo de comunidade tradicional no país. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, lançada pelo governo em fevereiro, prevê a realização de um censo nacional para mapear essas populações e seus problemas, mas ainda sem data para ocorrer.
Um dos poucos estudos disponíveis, realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social durante uma campanha de vacinação de 2006, apurou que a taxa de desnutrição das crianças até 5 anos em áreas quilombolas é o dobro da média nacional. A pesquisa identificou a chegada de programas sociais a essas populações, como Bolsa Família, serviços de saúde e luz elétrica, mas faltam redes de saneamento básico. Para o setor são previstos, até 2010, investimentos de 170 milhões de reais do Programa de Aceleração do Crescimento em 400 comunidades.
O Brasil foi a última nação latino-americana a abolir a escravidão. Queimou documentos oficiais sobre o período para impedir indenizações por parte dos fazendeiros e demorou mais de um século para reconhecer direitos das comunidades negras às terras que ocupam desde o período colonial. Agora, é esperar para ver quantos anos mais serão necessários para que os quilombos deixem de ser refúgios de quem teve de fugir da opressão para, efetivamente, se tornar lares de cidadãos brasileiros.
O repórter Spency Pimentel viajou para o Espírito Santo pela Agência Brasil.
Vá além
Para saber mais sobre o tema: Liberdade por Um Fio: História dos Quilombos no Brasil (Flávio dos Santos Gomes e João José Reis, Companhia das Letras); Terras de Quilombo: Caminhos e Entraves do Processo de Titulação (Girolamo Domenico Treccani, UFPA); Rebeliões na Senzala: Quilombos, Insurreições, Guerrilhas (Clóvis Moura, São Paulo, Ed. Ciências Humanas)
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