sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

50 Anos da Revolução Cubana II

Como o prometido no post abaixo (de ontem). Reflexões sobre o cinquentenário da Revolução Cubana. Primeiro um texto do blog do profesor Emir Sader, depoi um texto de Sérgio Augusto para o Caderno Especial Aliás do Jornal O Estado de S. Paulo, em homenagem a Revolução. E por fim, uma excelente enttrevista com Daniel Erikson acadêmico e autoridade em Cuba, também do Jornal O Estado de S. Paulo, no mesmo caderno especial.

Cuba, Revolução, 50
Emir Sader
De repente chegaram fotos de uns barbudos, posando como time de futebol, que tinham derrubado uma ditadura na América Central (sic – naquela época ainda não existia para nós o Caribe. Era uma região de “repúblicas bananeiras”, como depreciativamente nos referíamos a uma área de ditaduras – Somoza, Trujillo, Batista – como se fosse um fenômeno exótico na América Latina).Aquela ilha tropical começava a surpreender-nos, a falar de revolução em um continente em que essa palavra era reservada para um fenômeno longínquo – a revolução mexicana – e de que desconhecíamos a revolução boliviana de 1952. Revolução, na verdade, para nós, eram a soviética e a chinesa. De repente, começa a se esboçar uma no nosso próprio continente, no nosso tempo político de vida.Primeiro, a revolução nos chegava como luta contra o analfabetismo – que passou a representar um elemento essencial da luta emancipatória, a que a Venezuela e a Bolivia viriam a se somar recentemente, como se fossem carimbos de que se trata de processos revolucionários. Depois, as reformas urbana e agrária, as nacionalizações de empresas estrangeiras, mas sobretudo o discurso antimperialista.Diante das reações da maior potência imperial da historia da humanidade, Cuba passou logo a identificar-se para nós com revolução – nascia a expressão Revolução Cubana, que nos acompanha a 50 anos. Tudo começado em um primeiro de janeiro, o que passou a dar a essa data uma conotação nova – de tempos novos, de que a pomba no ombro do Fidel quando discursava, era um prenuncio seguro.Desde então, revolução, emancipação, dignidade, justiça, exemplo, solidariedade, internacionalismo – e tantas outras palavras, gestos, comportamentos, passaram a se incorporar a nosso mundo, a servir de norte, de referência e a identificar-se com Cuba. Nada foi igual desde que Cuba passou a expressar diante de nós a todos esses valores. Já não podíamos dizer que não eram possíveis, remetê-los para a utopia, como se não fosse possível a um pais ser pobre e ainda assim justo, ainda assim solidário, ainda assim internacionalista.Cuba nos trouxe a revolução e o socialismo. O fato de que uma sociedade possa viver não em função do lucro, da ganância, do valor de troca, do mercado, mas das necessidades das pessoas, possa colocar em primeiro lugar a educação, a saúde, a habitação, a cultura – nos aponta o que contrapõe o socialismo ao capitalismo.50 anos em que Cuba enfrentou as mais difíceis condições – do bloqueio dos EUA às duas tentativas de invasão do país por parte do governo estadunidense, pelo fim do campo socialista, pelas agressões reiteradas do imperialismo, pelo bloqueio e pelas mentiras – do que diz e do que cala – da imprensa monopolista mundial, pelo período especial e pelas catástrofes naturais. Cuba chega a seus 50 anos de Revolução desmentindo os que diziam que não sobreviveria sem o apoio da URSS, aos que se deslocaram para a Ilha para cobrir a suposta queda do regime cubano depois do fim dos regimes do leste europeu, aos que creiam que o país seria afetado pelas maiores convulsões se Fidel deixasse de estar à cabeça do governo.Cuba chega aos 50 anos soberana, decidindo seu futuro a partir de suas próprias experiências, sem nunca ter deixado de ser solidária e internacionalista, nem nos seus momentos de maiores dificuldades. Ao contrário, a Escola Latinoamericana de Medicina expande a quantidade de alunos que formam as primeiras gerações de médicos pobres da América Latina. Mantêm e reforça a Operação Milagre, que já devolveu a visão a mais de um milhão de pessoas. Estende seu trabalho CE combate ao analfabetismo, que possibilitou que a Venezuela e a Bolívia fossem o segundo e o terceiro territórios livres de analfabetismo, como apoio direto e sistemático de Cuba.São 50 anos de luta, de dignidade, de busca incessante da construção de uma sociedade justa, de apoio aos que precisam de apoio, de solidariedade com todos os povos do mundo. São 50 anos em que Cuba aponta o caminho da sociedade desmercantilizada, humanista, internacionalista – da sociedade socialista, de José Martí, de Fidel e do Che.
Do blog do professor Emir Sader

Las Vegas do Caribe
Sob Batista e com a conivência da Casa Branca, o crime organizado americano dominou a capital cubana

Sérgio Augusto

Hotel Nacional em 23/9/1958; três meses depois, o ditador Fulgencio Batista admitia a derrota - Havana, 31 de dezembro de 1958. Um réveillon inesquecível. Para os cubanos, para los gringos que lá curtiam mais uma mordomia bancada pela Máfia e, sobretudo, para o presidente Fulgencio Batista. Convencido de que não tinha mais como resistir ao avanço de los rebeldes barbudos comandados por Fidel Castro, o ditador cubano interrompeu a festa, ergueu um brinde, anunciou sua renúncia, desejou boa sorte a todos e embarcou às pressas para a República Dominicana, levando consigo 180 cupinchas e US$ 300 milhões.

O réveillon de 1958 para 1959 foi o “último baile da Ilha Fiscal” do governo Batista, o melancólico desfecho de uma tirania que havia durado 25 anos. Quem viu O Poderoso Chefão 2 tem uma idéia mais ou menos precisa do pandemônio daquela noite, em que também chegou ao fim o poder do crime organizado sobre a economia, a política e a sociedade de Cuba, capítulo fundamental das relações dos Estados Unidos com o continente latino-americano e matéria-prima de um recente e precioso estudo de T. J. English, Havana Nocturne: How the Mob Owned Cuba and then Lost it to the Revolution.

Qualquer semelhança entre Hyman Roth, o gângster interpretado por Lee Strasberg no filme de Francis Ford Coppola, e Meyer Lansky, o mafioso que fizera de Havana a Las Vegas do Caribe, não foi mera coincidência. Como a realidade costuma ser mais injusta que a ficção, Lansky não morreu quando Batista escafedeu-se de Santo Domingo para a Espanha, mas 24 anos mais tarde.

O primeiro mafioso a estender sua cobiça a Havana foi Al Capone, na década de 1920. Só depois de um encontro de tutti i capi, em dezembro de 1946, na própria capital cubana e com Frank Sinatra animando a noite, o crime organizado consolidou seu monopólio sobre a vida noturna, a jogatina, a prostituição, o mercado imobiliário, a construção civil e o sistema financeiro da ilha. Facilitou-lhe o serviço a ganância incomensurável de Batista, sócio de todas as negociatas; com a conivência da Casa Branca, que tinha sólidos motivos para considerar Cuba um protetorado, um quintal dos Estados Unidos.

Desde 1898, quando livrou Cuba do jugo espanhol, até 1959, a América do Norte reinou absoluta naquela região do Caribe. Os presidentes que permitiu fossem eleitos depois da desocupação militar da ilha, em 1902, ou eram frouxos e incompetentes ou tirânicos e corruptos. Mas nem quando eles extrapolaram, desrespeitando direitos humanos e apelando para golpes militares (Batista derrubou o ditador Gerardo Machado em 1933 e o banana Prío Socarrás em 1952), receberam críticas, e muito menos ameaças, de Washington. Eles, afinal, eram úteis aos negócios norte-americanos, à consolidação do que apregoava a última estrofe de um sucesso musical dos anos 1940: o rum e a Coca-Cola workin’ for the yankee dollar (trabalhando juntos para o dólar).

O sonho de uma “Cuba libre”, acalentado pelos cubanos desde o século 19, degenerou-se num drinque inventado pelos soldados enviados pelo presidente William McKinley para expulsar os espanhóis da ilha. José Martí, morto numa emboscada em 1895, não chegou a ver Cuba livre do secular ocupante europeu, mas alertou para a possível substituição dos espanhóis pelos norte-americanos. Martí, que viveu 14 anos exilado em Nova York, como correspondente do jornal argentino La Nación, foi o maior teórico (e mártir) da luta contra o imperialismo ibérico no Caribe.

A transformação do beisebol no esporte favorito dos cubanos foi apenas um detalhe, relativamente insignificante, no amplo processo de colonização cultural da ilha pelos Estados Unidos. Os cubanos entravam com o rum, a cana-de-açúcar, os charutos, a música, as mulheres, e os norte-americanos com investimentos, Coca-Cola, carrões último tipo, prioridade nas rotas internacionais de empresas aéreas – e todo o excedente da produção industrial made in USA. O “quintal” também era um paraíso fiscal e um bordel de luxo. Até o então senador John Fitzgerald Kennedy andou por lá, participando de uma orgia com três call-girls no Hotel Comodoro, a convite do mafioso Santo Trafficante.

Tão servil aos putativos governantes da ilha era o ditador Gerardo Machado que chegou a manipular o júri de um concurso anual de danzón, só de ritmos caribenhos, para que o embaixador dos Estados Unidos conquistasse o primeiro lugar. Seu sucessor foi menos descarado na subserviência, porém mais proficiente nos arreglos e mais pródigo nas concessões. Com Batista no poder, o quintal expandiu sua fama internacional, atraindo para seus hotéis faraônicos, cassinos e clubes noturnos um séquito de astros do cinema, estrelas do palco, empresários, políticos, playboys e damas de vida airada.

Ginger Rogers inaugurou o Hotel Riviera; Nat King Cole cantou no Tropicana; Tony Bennett no Sans Souci. Até nos nomes de seus templos dedicados à tavolagem e ao entretenimento Havana replicava Las Vegas. O livro de registro de celebridades que se hospedaram do Hotel Nacional de Cuba, apelidado de Castelo Encantado pelo romancista cubano Alejo Carpentier, encheria um catálogo telefônico mais grosso que o de Miami. Sinatra, um dos habitués, lá passou vários fins de semana, inclusive com Ava Gardner, que, apaixonada pela ilha, mas já sem o cantor em sua cama, voltou inúmeras vezes, para se divertir (e tomar banho de piscina au naturel) na Finca Vigía, do amigo Ernest Hemingway.

Hemingway foi a mais endeusada figura da Cuba pré-Fidel, depois de José Martí, por supuesto. Visitou a ilha pela primeira vez em 1928. Depois voltou, atraído pela pesca, pelo daiquiri e o mojito servidos no bar Floridita, pela paz para escrever acariciado pela fresca brisa matinal caribenha. Comprou o refúgio de Finca Vigía em 1939, lá viveu 21 anos e produziu seis livros, um dos quais O Velho e o Mar, cujo protagonista foi inspirado num pescador cubano. Circulava por Havana como um grande e sempre solícito senhor. Hospedava artistas de Hollywood, boxeadores, intelectuais e toureiros. Teve problemas com a repressão de Batista e saudou a vitória de Fidel, mas já estava de saída quando los barbudos chegaram. Sua finca, preservada como um santuário, virou museu.

Hemingway celebrou seu Nobel de Literatura, em 1954, numa festa patrocinada pelo rum Bacardi. Embora destilado em Porto Rico desde 1937, o Bacardi tem profundas raízes cubanas. Sua primeira fábrica, visionária iniciativa de um imigrante espanhol chamado Facundo Bacardi Massó, surgiu em Santiago de Cuba há 146 anos. Nas mãos de Emilio, filho mais velho de Facundo, a empresa floresceu, internacionalizou seu prestígio e enriqueceu o clã Bacardi, que da ilha só foi embora em julho de 1960, desiludido com os primeiros paredóns e as primeiras medidas repressivas da revolução.

É possível contar a história de Cuba através da evolução do império Bacardi, como, aliás, há pouco fez o jornalista Tom Gjelten, em Bacardi and the Long Fight for Cuba. Emilio Bacardi e José (Pepín) Bosch, marido de uma neta do patriarca da família e herdeiro do negócio em 1951, enfrentaram sem rebuços os ditadores de seu tempo. Emilio tinha apenas 24 anos quando participou ativamente da primeira guerra de independência de Cuba em 1868. Era um abolicionista (embora a cultura da cana-de-açúcar dependesse de mão-de-obra escrava), que gostava mais de escrever livros do que beber rum. Bosch pegou o último governo Batista, contra quem conspirou e cuja derrubada festejou.

Mas a vereda mais promissora e gratificante da história cubana pré-revolucionária é a musical. Que me desculpem todas as glórias literárias da ilha – como Carpentier, o poeta, escritor e ensaísta José Lezama Lima (que, por ser gay, enfrentou três ditaduras), o poeta Nicolás Guillén, o escritor, jornalista e ativista político Carlos Franqui, criador do legendário suplemento literário Lunes de Revolución, proibido de circular em 1961, e seu comparsa, o grouchomarxista Guillermo Cabrera Infante, outro futuro défroqué da revolução e a quem devemos as mais nostálgicas e criativas evocações da Cuba de cinco décadas atrás –, mas seus maiores batutas se consagraram compondo, tocando ou mesmo cantando aqueles insinuantes ritmos de raízes africanas nascidos ou plasmados no Caribe.

Habanera, mambo, rumba, bolero, guajira, guaracha, cha-cha-chá, conga, salsa – tudo isso devemos aos cubanos. A Orestes & Cachao López, que inventaram o mambro em 1939. Ao violinista Enrique Jorrín, que do mambo extraiu o cha-cha-chá posteriormente internacionalizado por Pérez Prado. A Miguel Matamoros, Beny Moré e Olga Guillot, intérpretes inigualáveis do bolero. A Ignacio Jacinto Villa, vulgo Bola de Nieve, o mais sofisticado cantor de cabaré de língua espanhola, o Bobby Short do Caribe.

Pairando acima de todos, o supremo gênio musical caribenho: o pianista, compositor e maestro Ernesto Lecuona (1895–1963), o Gershwin cubano, que deixou mais de 600 obras, entre zarzuelas, rumbas, boleros e rapsódias; pelo menos quatro delas (Siboney, Malagueña, Andalucia, Siempre en mi Corazón) sucessos populares fadados à eternidade. Lecuona foi a mais refinada tradução da “alma música”, decantada em verso por Guillén:
Tengo el alma hecha ritmo y armonía
todo en mi ser es música y es canto
desde el réquiem tristísimo de llanto
hasta el trino triunfal de la alegría.

Uma carcomida relíquia da Guerra Fria
Assim especialista em relações internacionais define embargo a Cuba, anacronismo do qual os EUA já poderiam ter se livrado desde o colapso da URSS
Laura Greenhalgh
Fidel e Nikita Kruchev em uma exibição de O Lago dos Cisnes, no Teatro Bolshoi, em MoscouSÃO PAULO - Indagado se ocupará algum posto na administração Barack Obama, Daniel Erikson silencia alguns segundos e diz que nada está definido. Porém, em círculos bem informados do Partido Democrata, diz-se que o presidente eleito pode vir a convocar este jovem especialista em relações internacionais para auxiliá-lo num dos capítulos mais complicados da política externa americana: o relacionamento Cuba/Estados Unidos. Erikson, dizem fontes do partido, sabe tudo sobre o embargo que há quase cinco décadas o “gigante do Norte”, como diz Fidel Castro, impôs sobre a rebelde ilha caribenha. E não só sabe tudo, como acompanha de perto os movimentos do Congresso americano, que poderá, ou não, autorizar o fim da sanção.

Formado em administração por Harvard, “Dan” Erikson é hoje um dos nomes de destaque do Inter-American Dialogue, think tank com sede em Washington, em cuja diretoria se sobressaem ex-presidentes latino-americanos, como o brasileiro Fernando Henrique Cardoso e o chileno Ricardo Lagos. Pois foi trabalhando para o Dialogue que, em 92 e 95, publicou dois grandes relatórios com vistas a um possível processo de democratização da ilha, após o colapso soviético. De lá para cá, Erikson não mudou seu tema de estudo: há pouco mais de um mês lançou o livro The Cuba Wars (editado pela Bloomsbury, sem tradução no Brasil), em que analisa as perspectivas cubanas a partir do afastamento de Fidel e de uma nova conjuntura política americana.

Nesta entrevista exclusiva, explica por que considera o embargo a Cuba “um anacronismo”, analisa os atuais esquemas de poder em Havana, a inércia política de Washington, os ódios familiares que cercam Fidel e ainda pondera: a transição política em Cuba pode não se inspirar no modelo russo ou chinês, como se tem dito, mas no modelo mexicano, em que um partido “eternizado” no poder comanda, com pulso firme, a flexibilização política e a abertura econômica. Assim, o Partido Comunista Cubano guardaria similitudes com o Partido Revolucionário Institucional (PRI) dos ex-presidentes Lázaro Cárdenas e Carlos Salinas, hoje dirigido por Beatriz Paredes, coincidentemente ex-embaixadora do México em Cuba.

Apesar da animosidade, quão intensos são os laços entre Cuba e Estados Unidos nos dias de hoje?

Estados Unidos e Cuba têm sido definidos como “inimigos íntimos” e hoje eu diria que essa definição é mais verdadeira que nunca. As relações políticas entre os dois países, que nunca foram boas, deterioraram-se fortemente durante o governo Bush, período de alta beligerância da parte de ambos os governos. Pois mesmo atravessando um tempo de confrontos mais intensos, EUA e Cuba continuam atados. São mais de 1 milhão de cubanos vivendo nos EUA, responsáveis pelo ingresso anual de US$ 1 bilhão na ilha. Porém, ainda que se considere o tumultuado período Bush, que está chegando ao fim, os EUA legalizaram as vendas de produtos agrícolas para lá e no ano passado o país foi o quinto maior parceiro comercial de Cuba. Ou seja, mesmo na animosidade, os laços são intensos.

A animosidade é insuperável?

Os anos que se seguiram à revolução castrista, muito agitados, geraram conflitos que distorceram completamente as relações Cuba-EUA construídas ao longo de um século. Estranho, mas é verdade: a forte razão pela qual os EUA mantêm o embargo contra Cuba é que Washington nunca perdoou Fidel Castro pela chamada “crise dos mísseis”, e Fidel, por seu lado, também nunca pediu desculpas a Washington por ter abrigado secretamente armas nucleares soviéticas. Fora isso, os EUA se engajaram numa série de tentativas para assassinar Fidel, particularmente nos anos 60, tentativas sobre as quais também não houve nenhuma manifestação de arrependimento. Posteriormente vimos o governo americano transferir a política em relação a Cuba para as mãos dos piores inimigos de Fidel, a comunidade de exilados que odiava o líder cubano. Só uma analogia conjugal para explicar a relação conturbada entre esses dois países. Eles jamais se divorciaram realmente. Preferem há 50 anos manter um casamento ruim, ignorando o fato de que precisam mesmo é de um bom conselheiro matrimonial.

Estes 50 anos de regime comunista foram marcantes o suficiente para eliminar reminiscências dos tempos pré-revolução?

Pelo contrário, sob vários aspectos preserva-se a Cuba pré-revolucionária e o modelo econômico definido por Fidel até contribui para isso. Você ainda vê hoje nas ruas de Havana aqueles mesmos carrões Ford e Chevrolet dos anos 50, além de muitos prédios cuja arquitetura nos remete às empresas americanas que lá operavam antes da revolução. O que torna uma visita a Cuba tão encantadora e tão trágica ao mesmo tempo é que a gente sente que o país parou no tempo. Mesmo as bases da Cuba contemporânea foram estabelecidas por Fidel nos anos Guerra Fria, o que só confirma a tendência de se prender ao passado, embora o país seja capaz de inovações interessantes em campos como medicina e biotecnologia. Só que nem essas inovações nos fazem pensar em Cuba como país do futuro.

Houve avanços em áreas como medicina e biotecnologia, mas a internet permanece sob controle, o que parece contraditório.

Pois é, você tem mais celulares em Cuba, mais televisores, mais aparelhos de DVD, mas a internet continua controlada em âmbito privado. Não é à toa que os poucos blogueiros da ilha, como Yoani Sánchez, tornaram-se celebridades. Em janeiro, Ricardo Alarcón (presidente da Assembléia Nacional Popular e homem forte do regime) deu uma palestra para alunos do curso de ciências da computação numa universidade cubana e um estudante o provocou do auditório: “Como é que você vem falar sobre isso quando não temos nem acesso à internet?” Fica uma situação absurda: só em Cuba lecionam-se ciências da computação para pessoas que estão proibidas de acessar a rede mundial.

Esse controle será duradouro?

Não, por uma questão tecnológica. Ficou mais difícil controlar: você tem novas tecnologias de comunicação, telefones celulares recebem informações via internet o tempo todo, os hotéis são obrigados a ter ambientes wi-fi, tudo isso dificulta o controle. E há uma juventude que, embora nascida no regime comunista, tem sede de se conectar. Veja só: a geração que fez a revolução está morrendo, portanto, caberá às gerações mais novas reinterpretar a história. À medida que o tempo passa, os mais jovens serão menos compelidos a defender a revolução em todos os seus aspectos e certamente serão mais severos em seus julgamentos.

Na sua opinião, o embargo americano contra Cuba tornou-se um anacronismo político?

Ele foi implementado na década de 60 como reação à opção cubana pelo comunismo e hoje virou uma relíquia da Guerra Fria. Cuba é o único país no mundo vetado aos cidadãos americanos. Ou seja, os americanos não precisam de autorização para viajar para China, Irã ou Coréia do Norte, mas se viajarem para Cuba sem permissão podem ser penalizados. Aquelas razões de segurança alegadas para estabelecer o embargo evaporaram com o colapso da URSS em 1991. Essa situação se sustenta por três razões: a oposição irredutível de cubano-americanos, a preocupação com abusos de direitos humanos na ilha e a própria inércia do governo dos EUA.

Vejamos separadamente as três razões. Qual é, afinal, a magnitude dessa oposição permanente da comunidade cubano-americana?

Ela se manifesta em termos financeiros e políticos. Aquela primeira comunidade de exilados foi-se modificando com o tempo. Muitos morreram, outros saíram de cena, agora uma geração mais jovem vem tomando a dianteira. Eu diria que atualmente essa comunidade vive um conflito em relação a Cuba. Uma parte dela é contra o embargo, até por reconhecer que ele não funciona. Mas outra parte insiste na sua manutenção, teima em pedir o incremento das medidas restritivas e punitivas. São pessoas que sentem uma aversão profunda pelo regime castrista, ou seja, Fidel é o símbolo contra o qual sempre vão querer lutar. Recente pesquisa fez um bom balanço dessa comunidade: a geração mais jovem quer mais negócios, mais turismo e mais liberdade para ir a Cuba. Os mais velhos querem manter posições do passado, tentando alimentar uma certa influência internacional. Na política interna, os cubano-americanos tentam ampliar seu espaço de representação. Já fizeram dois senadores, quatro deputados no Congresso e não podemos nos esquecer da força política local, na Flórida.

Diz-se que a Flórida elegeu Bush em 2000. Obama correu atrás desses mesmos votos...

Mas, atenção: em 2000, Bush chegou à Casa Branca com o apoio da comunidade cubano-americana da Flórida, tendo vencido no cômputo geral por 537 votos. Ganhou apertado e precisou desesperadamente do apoio dessa comunidade. Já Obama bem que pediu o voto cubano-americano, mas não precisava dele para vencer a eleição presidencial. Não precisou da Flórida para conquistar a Casa Branca.

Como está a situação dos direitos humanos na ilha, apontada pelo senhor como uma das razões de manutenção do embargo?

De modo geral, a situação não mudou, tanto que as pessoas não podem se manifestar livremente sem provocar uma situação difícil com o regime. Mas há alguns sinais positivos. Por exemplo, o número de presos políticos em Cuba caiu 1/3 desde que Raúl Castro chegou ao poder. Baixou de 320 prisioneiros para 219. O governo não tem feito novas detenções e, ao mesmo tempo, tem procurado sentenciar gente que está presa há muito tempo. Em contrapartida, continuam os constrangimentos e ameaças para ativistas pela democracia.

Por que existe, como diz o senhor, uma inércia do governo americano em relação a uma possível normalização das relações com Cuba?

Basta pensar o seguinte: a manutenção do embargo tem um custo político enorme para os EUA. Por outro lado, desmantelar o embargo irritaria profundamente os exilados de Miami, o que acarretaria outro custo político. Então, não se faz nada.

No seu livro, o senhor analisa o imbróglio Cuba-EUA dizendo que o sucessores de Fidel podem querer continuar a luta e, de outro lado, o governo americano continua manifestando sua reação alérgica ao socialismo cubano. O acordo final entre esses dois países é uma utopia?

Estados Unidos e Cuba nunca tiveram um relacionamento normal, mesmo antes de Fidel assumir o poder. Já foram até aliados, mas as relações sempre manifestaram tensão. Ambos os países seriam capazes de ser mais pragmáticos e se concentrar em questões de interesse mútuo, ajudando a criar uma base para o diálogo. O problema central é que tanto EUA quanto Cuba acreditam ser “excepcionais”. Como é que pode haver normalidade no relacionamento daqueles que se julgam acima de tudo?

Por que “excepcionais”?

Os EUA têm esse traço antigo, vem lá de trás, dos tempos da coroa britânica, das lutas de independência e de uma implantação civilizatória no Novo Mundo. Cuba, por sua vez, tem impresso em sua identidade nacional o orgulho das lutas anticolonialistas, uma delas empreendida até com a ajuda dos EUA. Ou seja, a identidade cubana apresenta essa marca perene de defesa da soberania, acentuada por 50 anos de tensões com o vizinho americano. Não devemos nos esquecer de que os cubanos contaram nesse tempo todo com Fidel, que também é uma figura política excepcional, goste-se ou não dele.

Qual é a sua opinião sobre Raúl Castro, o sucessor nomeado de Fidel?

Ele é mais pragmático, especialmente em temas econômicos. Mas falta-lhe justamente o carisma que manteve o irmão no poder por tantos anos. Fidel é um workaholic, um microadministrador que pensa em tudo, que se interessa por detalhes, ao passo que Raúl parece mais disposto a delegar responsabilidades aos ministros.

Existe um estímulo para que jovens líderes ganhem destaque no cenário político cubano?

Penso que os líderes mais velhos sabem que a revolução pode não sobreviver e, para evitar esse risco, precisam formar uma nova geração de líderes. Daí a presença de tantos vice-ministros jovens no comando político da ilha. Mas a velha-guarda continua mandando, essa é a verdade. Fidel quando se despede do poder, aos 82 anos, catapulta seu irmão Raúl, de 77. Este, por sua vez, nomeia José Ramón Machado Ventura, de 78, para ser seu “segundo” na estrutura. Os velhos continuam mandando.

Voltando ao embargo, quais são as perspectivas de que ele seja suspenso na administração Obama?

Durante a campanha, Obama prometeu estabelecer um diálogo Washington-Havana e permitir que a grande família cubano-americana viaje para Cuba livre das restrições de hoje. Mas também disse que manterá o embargo enquanto Havana não adotar medidas democratizantes. O que isso significa? Teremos um certo afrouxamento nas restrições de viagem, mas talvez não vejamos um grande esforço para suspender o embargo. Até porque o Congresso americano transformou esse embargo em lei na década de 90, precisamente para impedir que Bill Clinton adotasse medidas para normalizar as relações com Cuba. Hoje um presidente americano não pode suspender a sanção sem pedir autorização do Congresso.

E como está o assunto “Cuba” entre os congressistas?

O Congresso americano está dividido. Uma parte dos congressistas acha que o embargo não funciona, portanto, deve ser eliminado inteiramente. Outra parte acha que ele deve ser mantido até que Cuba se democratize. Para derrubar leis nos EUA é preciso formar uma maioria consistente e fazer do tema uma top priority na agenda nacional. No caso de Cuba, essas condições não estão dadas.

Quais são os principais inimigos e os principais aliados da ilha no Congresso americano?

Os principais inimigos é fácil de apontar. Fidel Castro tem dois sobrinhos no Congresso – os irmãos Lincoln e Mario Díaz-Balart. O pai deles, Rafael, era irmão da primeira mulher de Fidel, Mirta Díaz-Balart. Rafael, cunhado de Fidel, também se tornou no exílio um feroz opositor do regime castrista. Portanto, há 50 anos Fidel vem sendo combatido a partir do próprio ninho familiar. Como aliados de Cuba no Congresso americano estão todos aqueles parlamentares que representam interesses de grupos dispostos a negociar com a ilha, abrir frentes de negócios.

Pensando em oportunidades perdidas, o embargo já poderia ter sido suspenso?

Sim, quando ocorreu o colapso da União Soviética, em 1991. Esse ato teria ajudado muito mais a causa da democracia em Cuba do que a manutenção de uma política ultrapassada, que impede o desenvolvimento socioeconômico do país, irrita o resto do mundo e faz os EUA parecerem incompetentes, no melhor dos casos, e hipócritas, no pior.

Em Havana, comenta-se que republicanos e democratas americanos são ‘farinha do mesmo saco’. Ou seja, que a política dos EUA em relação a Cuba é a mesma, independentemente de quem esteja no Salão Oval. O sr. concorda com essa visão?

Eu acho que republicanos e democratas são grupos políticos bem diferentes. Republicanos ainda hoje adotam um discurso duro em relação ao comunismo, ao passo que democratas entendem que as condições mundiais mudaram, não existe ameaça vermelha e a agenda é efetivamente outra. As diferenças entre republicanos e democratas foram explicitadas na última campanha presidencial. Não se pode dizer que McCain e Obama pensem do mesmo modo em relação a Cuba. McCain justifica o embargo, Obama diz que as coisas precisam mudar.

Consideremos o período entre o afastamento de Fidel, em julho de 2006, e a transmissão definitiva do poder, em fevereiro de 2008. Como os dois países se comportaram nesse intervalo de tempo em que a saúde de Fidel estava bem abalada e sua volta ao poder era uma incógnita?

Quando Fidel Castro anunciou pela primeira vez sua doença, em julho de 2006, ele passou o poder provisoriamente para seu irmão Raúl e um grupo de ministros influentes. Isso levou a uma situação em que Fidel ainda era oficialmente o presidente de Cuba, mas Raúl na verdade estava governando. Fidel esteve na posição invejável de supervisionar seu sucessor durante 19 meses antes de renunciar oficialmente. Usou esse período para aclimatar o país à liderança de Raúl, aprofundar alianças com a América Latina e Ásia, mas hesitou em implementar reformas econômicas mais profundas. Os EUA, por sua vez, estavam tão impactados com a idéia de uma súbita transição democrática em Cuba que não tinham plano algum a oferecer. Perderam uma oportunidade de influenciar o rumo das mudanças políticas da Cuba pós-Fidel.

O sr. acredita que os EUA jogam uma espécie de ‘waiting game’ em relação a Cuba, ou seja, aguardam a morte de Fidel para pressionar por mudanças?

Hoje são poucas as pessoas nos EUA que acreditam num colapso do governo cubano após a morte de Fidel. Ao mesmo tempo, qualquer engajamento com Cuba continua sendo um tema controvertido, especialmente por causa da oposição que persiste entre exilados influentes em Miami. Resultado: o governo americano encontra-se na infeliz posição de saber que sua política de embargo não vai funcionar, mas é difícil encontrar apoios suficientes para mudar a situação. Barack Obama propôs mudanças até modestas no trato com Cuba, durante a campanha. Talvez ele seja mais audacioso quando já estiver instalado na Casa Branca. Considere também que, se os Estados Unidos levantarem o embargo da noite para o dia, Cuba estaria totalmente despreparada para as transformações que isso pode acarretar.

Obama vai mesmo fechar o centro de detenção de Guantánamo, na parte oriental da ilha?

Ele já manifestou publicamente essa intenção. Deve desativar a prisão, mas não vai mexer na questão territorial. Aquela velha demanda dos cubanos, de que é irregular a presença da base militar americana na península de Guantánamo, estabelecida por uma emenda que eles consideram caduca, nisso Obama não vai mexer.

Vez por outra, fica-se sabendo que há um “movimento de retorno” articulado na Flórida por exilados que pretendem voltar para a ilha e reaver os bens que lhe foram confiscados pela revolução. Isso existe de fato?

Existe uma pequena, mas influente, minoria interessada nessa questão, gente que vai pressionar para ser indenizada. Mas é uma minoria. Um dos sinais de mudança em Miami é que grande parte dos cubano-americanos percebeu que nunca mais retornará a Cuba. A geração mais jovem se considera em primeiro lugar americana e, depois, cubana. Este é um avanço a meu ver, pois o futuro de Cuba está nas mãos dos que permanecem na ilha.

Que transição política está se fazendo em Cuba? Estudiosos apontam três caminhos possíveis: o modelo russo, formatado a partir do suporte de um grupo de aliados, como Venezuela, Coréia e a própria Rússia; o modelo chinês, combinando controle político com reformas econômicas; e um modelo inesperado, em que a própria ilha estabeleceria os passos para a democracia. Qual é seu palpite?

Já existe uma transição política em Cuba, que se fará de maneira lenta e gradual. Creio que o modelo russo não deva ser o escolhido, porque ele se funda na dependência do petróleo da Venezuela e da própria Rússia. Os cubanos sabem quanto lhes custou essa mesma dependência no passado. O modelo chinês tampouco deve ser adotado. Os cubanos sabem que ele foi montado para um país de dimensões continentais, habitado por 1,3 bilhão de pessoas e geograficamente aberto para a Ásia. Ao passo que Cuba é um país pequeno, com 11 milhões de habitantes, uma ilha do Caribe. Portanto, fico inclinado a pensar num modelo de transição lenta, com reformas políticas e econômicas ditadas, de maneira autoritária, inclusive, por um partido que se eterniza no poder. Nesse sentido, eu apostaria numa transição à mexicana, algo que lembra o PRI, partido político que ficou 70 anos no poder no México.

Então o senhor está agregando uma quarta possibilidade, o “modelo mexicano”?

Exatamente. Considero bastante essa possibilidade. De concreto, mesmo, cheguei a três conclusões nos meus estudos. Primeira: o futuro dos cubanos precisa ser determinado por eles próprios. Segundo: não são poucos os cubanos que aspiram à democracia. Ao contrário, são muitos. E atingirão essa meta, talvez num tempo em que Fidel já não esteja mais em cena. Terceira: os EUA podem contribuir para que Cuba faça uma transição política positiva. E contribuir como? Procurando engajar-se com a sociedade cubana em diferentes níveis, com o governo, os líderes culturais, os acadêmicos, a sociedade civil, os cidadãos comuns.

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