A alma do grande Cruzeiro, das décadas de 60 e 70. Entendo abaixo a importância desse dirigente que transformou o Cruzeiro de um time de itlianos do Bairro: Barro Preto ao MAIOR DE MINAS.
Carmine Furletti, o Homem do Futebol
- Serro-MG, 15dez26; Belo Horizonte, 09jan08
O “Homem do Futebol”
Entre 1953, quando entrou para o Conselho Deliberativo do Cruzeiro, a convite do presidente José Greco, e 1985, quando passou a presidência do clube ao sucessor Benito Masci, Carmine Furletti respirou Cruzeiro. E, mesmo depois, como conselheiro nato, nunca deixou de ser consultado nos momentos mais graves da instituição.
Furletti é uma unanimidade entre os cruzeirenses. A simples menção de seu nome traz a lembrança de conquistas extraordinárias, times fantásticos, craques geniais. Furletti sempre foi o “homem do futebol” no clube. Assim como Felício Brandi ficou no imaginário da torcida como o administrador que fez o Cruzeiro saltar do Barro Preto para o mundo, Furletti passou à história pela condução de um time que esteve entre os melhores da história do futebol entre 1965 e 1977, a Academia Celeste.
Nessa época, Furletti era tão importante que o clube quase parava quando ele viajava para Saquarema, cidade que, nos Anos 60 e 70, era pouco mais do que uma vila de pescadores no litoral norte fluminense. Quando batia o cansaço, o Vice de futebol se refugiava na casa branca de janelas e portas azuis que mantinha bem no coração da vila. Sem telefone e com estradas ruins, a cidadezinha o protegia das amolações cotidianas do futebol. Era lá que ele passava refletia sobre os problemas do time e imaginava soluções que resultavam em mais vitórias e títulos da Academia Celeste
Em Belo Horizonte, seus diretores tentavam manter a casa em ordem até a volta do chefe. Às vezes, era impossível. Como no dia em que dois deles viajaram a noite inteira só pra esclarecer uma dúvida. Furletti conta: “Eu estava saindo para pescar quando eles chegaram dizendo que um jogador cabeludo, com sotaque carioca, usando bermudas e sandálias tinha chegado ao clube dizendo ter sido chamado por mim pra jogar no Cruzeiro. Os diretores me ligaram, mas os telefones de Saquarema estavam mudos. Foi aí que o Carioca [José Paulo de Souza] e o Dr. Ari [Ari da Frota Cruz] decidiram viajar a noite inteira só pra saber se a história contada pelo rapaz era verdadeira. O jogador era o Nelinho, que vi jogar no Remo, e tinha talento de sobra pra vestir a camisa do Cruzeiro.”
Sangue italiano, sabedoria mineira.
Furletti era centralizador, porém acessível, ameno e bom companheiro. Tostão dizia que, enquanto Felício era todo negócios, só tinha olhos para os interesses do Cruzeiro, Furletti era capaz de abstrair os interesses financeiros e ouvir os problemas pessoais dos jogadores.
Era também um desportista nato. Apesar da rivalidade e dos conflitos entre Cruzeiro e Atlético, ninguém jamais ouviu dele uma palavra de desabono ao adversário, aos juízes ou às decisões nem sempre justas da Federação Mineira de Futebol. Furletti entendia as limitações das pessoas. Sabia que não há neutralidade possível no futebol. Muitos erros dos juizes, insultos dos torcedores rivais ou decisões facciosas dos dirigentes decorriam de paixões clubísticas. Por isso, ele ouvia muito, falava pouco e quase não reclamava. Preferia ponderar e convencer do que partir para o bate-boca tão comum no futebol quando os ânimos se exaltam.
Seu perfil conciliador favorecia o acesso a ambientes que nenhum outro cartola jamais se atreveria a freqüentar. Como numa reunião em que só havia torcedores rivais. Ele compareceu na qualidade de convidado do seu amigo, Adelchi Ziller, para o lançamento da Enciclopédia do Atlético. Quando chegou, metido num terno bem cortado, com sua indefectível postura de capo italiano, houve alvoroço e até um princípio de vaia, abortada pelo anfitrião com um discurso curto e grosso: “Aqui, ninguém vai maltratar o Furletti, porque ele é meu amigo e porque é um desportista correto e elegante em todas as suas atitudes. Ao invés de hostilizá-lo, temos é que aprender com ele como se faz um grande time.” Foi aplaudido.
Mas Furletti tinha também seus momentos de ira. Num deles, ainda jovem, bateu num torcedor do Atlético que falava mal do Cruzeiro bem nas sociais do Estádio JK. O valentão era delegado e quis prender Furletti. Formou-se a confusão e a torcida impediu a prisão. Irritado, o policial saiu à cata de reforços para fazer valer sua autoridade. Quando voltou, Furletti tinha sumido. Chato foi ter que ficar algum tempo longe dos jogos.
De outra vez, chegando à Toca da Raposa, ele encontrou um repórter que o havia chamado de mentiroso por um suposto descumprimento de cláusulas do contrato do ponteiro Natal. O sujeito queria desestabilizar o time, às vésperas de um clássico contra o Atlético. Mesmo percebendo a armação, Furletti não se conteve e derrubou o mentiroso com um cruzado de direita no queixo. Compreender as malandragens do futebol era uma coisa, ser chamado de mentiroso e desonesto, outra bem diferente. Aí, segundo ele, o sangue italiano fervia.
Essa mistura de explosão e maturidade está na base de sua formação. No sangue italiano do pai Eugênio Furletti, nascido em Carrara, Itália, e no mineiro da mãe, Nelsina Silva, nascida no Serro, berço de boa parte da sabedoria política mineira.
Eugênio Furletti começou a vida no Brasil trabalhando na Mina de Morro Velho. Lá, fez amizade com os ingleses, o que facilitou sua saída do fundo do chão para uma missão mais nobre: administrar os garimpos de diamante que a companhia tinha no Serro. Abastecida por tropeiros, a cidade não tinha como prover alimentos e utensílios domésticos para a massa de garimpeiros que chegava sem parar. Eugênio percebeu a oportunidade que se descortinava, abandonou a mineração e abriu um armazém.
Em 1931, Eugênio e Nelsina mudaram-se para Belo Horizonte com os doze filhos. Compraram um cortume e, depois, fundaram a Sapataria Velocino. Furletti cresceu aprendendo a arte do comércio com o pai, e a do futebol com o primo Domingos Perez, o Mingote, estudante de Medicina e jogador do América.
E foi o primo que o levou ao Estádio da Alameda, para sua primeira partida de futebol. O Palestra venceu o América por 5 x 2 e, naquele 12 de julho de 1936, nascia mais um palestrino. “Geraldo, Tião e Gegê, Souza, Caieira e Thomazinho, Pantuzzo, Orlando Fantoni, Niginho, Bengala e Nonô, nunca me esqueci desse time que me fez virar palestrino roxo.”
Furletti & Brandi
Outro estímulo para o amor ao futebol, Furletti recebeu do irmão Orlando que jogou na várzea com Nonô e Braguinha, mais tarde titulares do Cruzeiro. Furletti cresceu freqüentando o clube e quando recebeu convite para entrar no Conselho Deliberativo, não se surpreendeu.
Antes dos 30 anos, ele já podia ser considerado um veterano na vida do Cruzeiro. A entrada para a diretoria, pelas mãos do vice-presidente Natalino Triginelli, foi só um passo a mais. Quando aconteceu, Furletti levou junto o amigo Felício Brandi. Os patriarcas Eugênio Furletti e Emílio Brandi eram amigos e a relação entre seus filhos sempre foi boa.
Mas as dificuldades financeiras e as divisões políticas, mantinham o Cruzeiro sempre à beira da falência nos Anos 50. Furletti participou da gestão José Greco mas, junto com todo seu grupo político, foi excluído do Conselho na gestão Manuel Carvalho. Somente em 1959, com a vitória de Antonino Pontes, o grupo voltou ao clube. E, com Furletti e Brandi na diretoria, iniciou-se a época de ouro do Cruzeiro.
A gestão de Antonino Pontes em 59/60 rendeu um bicampeonato ao Cruzeiro. Mas a concessionária Ford do presidente passou por problemas financeiros e ele não pode se candidatar à reeleição. Felício e Furletti assumiram, de vez, o comando. Felício na administração e Furletti no futebol, fórmula que se revelou perfeita nos 17 anos seguintes.
Autoridade indiscutível
A amizade entre eles resistiu bem ao tempo e ao natural desgaste do exercício do poder. Em 1972, Felício contratou Yustrich para treinar o time que supunha estar sem motivação depois de tantos campeonatos mineiros conquistados. Aborrecido com os motivos alegados para contratar o “Homão”, Tostão não quis mais jogar no Cruzeiro. Mas Furletti pagou para ver até onde iria a nova fórmula, a tal linha dura.
Yustrich começou, como ele mesmo dizia, vestido de cordeiro. Mas, em conversas com jornalistas já avisava que, em breve, vestiria sua verdadeira pele, a de lobo. Até se gabava de alguns de seus truques pra amaciar os cartolas. Um deles, teria feito sucesso no Atlético. Ele deixava a caneta cair e olhava firme para o presidente que, encabulado, abaixava-se para apanhá-la.
Sabendo disso, Furletti tratou de domar a fera. E a primeira oportunidade surgiu ao final de um jogo em Araxá. Roberto Batata recusou a camisa a um garoto seguindo ordens do treinador. Furletti mandou o ponteiro voltar a campo e entregar a camisa ao torcedor. Fingindo fúria, Yustrich quis tomá-la de volta. No melhor estilo italiano, sem gritar, mas com severidade, Furletti se impôs: “Aqui, você não manda nada, você é empregado; a camisa é do garoto e pronto.” Yustrich durou pouco no cargo.
Os treinadores que compreendiam a hierarquia, não tinham problemas com Furletti. Foram os casos de Aírton Moreira, Gerson dos Santos, Ílton Chaves e Orlando Fantoni. Nada de gritaria, de imposições, de autoritarismo. No Cruzeiro de Furletti, treinador treinava, dirigente comandava. E o cargo de Capitão também era cargo de sua confiança, mas não do técnico. Por isso, Piazza sempre foi Capitão, embora por duas ou três vezes, tenha entrado em conflito com a direção do clube. Furletti reconhecia sua liderança e honestidade. Sabia que desavenças são normais num ambiente de trabalho e podiam ser tratadas com respeito mútuo.
Ainda hoje, não há jogador que, tendo trabalhado com Furletti, não lhe tenha respeito. Dos mais simples como Massinha, a quem Furletti teve de convencer a aceitar o lanche na primeira viagem aérea do time, na Taça Brasil de 1960 – o lateral não queria gastar dinheiro pagando por tão pouca comida – até bem sucedidos como Tostão e Raul Plassmann que continuam seus amigos.
Vencedor
Furletti foi um vencedor. Entre 1959 e 1977, esteve à frente de dezenas de conquistas que tornaram o Cruzeiro conhecido em todo o mundo. Mas a maior de todas, talvez tenha sido o Campeonato Mineiro de 1984. Desde que se desfez do time campeão da Libertadores de 1976, o Cruzeiro nunca mais conseguiu armar outro tão poderoso quanto aquele. Aproveitando-se disso, o Atlético chegou ao hexacampeoanto mineiro. Cansado de ver o time em segundo plano, o Conselho Deliberativo elegeu Furletti presidente do clube para o biênio 83/84.
Nesse curto período, ele recuperou a dignidade do clube aplicando três goleadas de 4 gols no Atlético. A última, em dezembro de 84, para ganhar o título mineiro. Missão cumprida, Furletti voltou pra casa.
Atualmente, distante do dia-a-dia do futebol, Furletti acompanha o time pela TV. E com olhar crítico que quem conhece futebol. E recebe os amigos no escritório de sua empresa de ônibus para conversar sobre os destinos do clube. A novidade nessa fase pós-futebol, é que ele passou a viajar para Saquarema despreocupado. O clube cresceu de tal forma que não depende mais de um ou outro dirigente. E, se precisar, bem, hoje em dia, o telefone de Saquarema já funciona.
- Livro: Páginas Heróicas, dezembro de 2003.
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