Por Dennis de Oliveira [Segunda-Feira, 5 de Maio de 2008 às 11:34hs]
Você imaginaria uma manifestação pública que unisse intelectuais tucanos, jornalistas de extrema-esquerda, um articulista de extrema-direita, um músico que protagonizou um movimento de rebeldia estética, uma liderança política que se afirma marxista, lideranças empresariais? Uma manifestação que vai contra uma política que proporciona a inclusão de um segmento social historicamente excluído? Uma manifestação que elogia medidas recentemente tomadas na emergência do neoconservadorismo nos Estados Unidos? E tudo com ampla cobertura do Jornal Nacional?
Pode acreditar que isto aconteceu. Foi o manifesto entregue no Supremo Tribunal Federal assinado por lideranças (?) e intelectuais (?) solicitando que a corte declare inconstitucional a adoção das cotas nas universidades com a alegação de que isto fere o tratamento igual, independente de raça, credo, etc. previsto na Constituição.
O que une esta aliança tão ideologicamente heterogênea? Os seus membros não são vítimas do racismo que impera sobre a população negra. São pessoas que não sofreram e não sofrem com os mecanismos de exclusão racial e querem ditar como esta população negra deve lutar pelos seus direitos. Será que este mesmo grupo aceitaria que os povos de matriz africana também decidissem como os judeus deveriam ser reparados após o Holocausto nazista? Será que também é contra as políticas de ação afirmativa implantadas no final do século XIX e início do século XX que beneficiaram os imigrantes europeus (provavelmente muitos destes são descendentes destes imigrantes e beneficiários diretos destas políticas de ação afirmativa)? .
A argumentação do manifesto é absurda. Parte do pressuposto de que políticas de ação afirmativa "racializam" a questão social, como se esta já não fosse racializada historicamente no país. A questão de que o problema da população negra é social e não racial não responde a seguinte pergunta: por que os negros são pobres? Porque o critério de ascensão social no país é racializado. Assim, não são as políticas de ação afirmativa que irão "racializar" as relações sociais, elas já são racializadas e ignorar isto é manter as assimetrias e desigualdade de oportunidades com marcas raciais no país.
Outro argumento no manifesto é que as políticas racializadas são excludentes. Cita o apartheid e as classificações étnicas feitas na época da colonização. O argumento é matreiro: compara uma reivindicação voltada para superação das desigualdades raciais com medidas tomadas por poderes racistas para a manutenção e ampliação das hierarquias raciais. Tem um fundo cristão neste argumento. Pedem para que a população negra, diante da violência que sofre do sistema, aja como Jesus Cristo: diante do tapa recebido, ofereça outra face.
Mas a lógica reacionária se mostra quando o texto do manifesto considera "um avanço" as declarações de inconstitucionalida de feitas pela Suprema Corte dos EUA das ações afirmativas naquele país. Não informam, os manifestantes, que esta ação da Suprema Corte ocorre dentro de um retrocesso conservador nos últimos anos nos EUA que tem como conseqüência o aprofundamento das desigualdades sociais naquele país, a concentração de renda e a emergência de uma extrema-direita cujas políticas são danosas para todos os povos. Não me surpreende que Reinaldo Azevedo defenda isto. Mas será que José Arbex, Ferreira Gullar, César Benjamin e outros endossam isto ou a paixão anti-cotas os faz aliar-se a idéias e pessoas conservadoras deste tipo?
E, finalmente, qual é a alternativa apresentada pelos signatários? Esperar uma melhora no ensino público para que as condições sejam iguais? Talvez ignorem os estudos feitos pelo economista Ricardo Henriques, do Ipea(Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) de que a manutenção do atual grau de evolução dos indicadores sociais da população negra fará o conjunto deste segmento social atingir o atual estágio em que se encontra a população branca em 32 ANOS!!! Traduzindo: se a população branca ficasse parada nos atuais indicadores sociais e a população negra continuasse o ritmo atual de melhoria das suas condições sociais, em 32 ANOS TERÍAMOS A PRETENSA EQÜIDADE SOCIAL!!! Seria interessante estes intelectuais irem pedir à população negra para que aguardem uns 30 anos para conseguir a sua cidadania (só 30 anos, isto não é nada!).
O debate anti-racista no Brasil incomoda pelo seguinte motivo: combater o racismo implica, necessariamente, em redistribuir riquezas e isto significa perda de privilégios para alguns. Enquanto o combate ao racismo fica no aspecto etéreo, sem foco, como mera denúncia, a solidariedade é enorme. Não é politicamente correto assumir-se como racista, principalmente para quem se diz "intelectual" e "de esquerda". Mas incomoda - e muito - quando o movimento negro supera a fase da denúncia e passa a exigir a eqüidade num país em que o bem estar é um privilégio e a socialização dele implica em perder privilégios. Em casos como este, fronteiras ideológicas se esvaem e esta aliança - que parece impossível de acontecer - não soa tanto estranha. E muitas figuras que, pelas suas posições político-ideoló gicas jamais teriam visibilidade na Globo, tiveram seus minutos de fama no Jornal Nacional.
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Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, presidente do Celacc e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (Neinb/USP).
Pode acreditar que isto aconteceu. Foi o manifesto entregue no Supremo Tribunal Federal assinado por lideranças (?) e intelectuais (?) solicitando que a corte declare inconstitucional a adoção das cotas nas universidades com a alegação de que isto fere o tratamento igual, independente de raça, credo, etc. previsto na Constituição.
O que une esta aliança tão ideologicamente heterogênea? Os seus membros não são vítimas do racismo que impera sobre a população negra. São pessoas que não sofreram e não sofrem com os mecanismos de exclusão racial e querem ditar como esta população negra deve lutar pelos seus direitos. Será que este mesmo grupo aceitaria que os povos de matriz africana também decidissem como os judeus deveriam ser reparados após o Holocausto nazista? Será que também é contra as políticas de ação afirmativa implantadas no final do século XIX e início do século XX que beneficiaram os imigrantes europeus (provavelmente muitos destes são descendentes destes imigrantes e beneficiários diretos destas políticas de ação afirmativa)? .
A argumentação do manifesto é absurda. Parte do pressuposto de que políticas de ação afirmativa "racializam" a questão social, como se esta já não fosse racializada historicamente no país. A questão de que o problema da população negra é social e não racial não responde a seguinte pergunta: por que os negros são pobres? Porque o critério de ascensão social no país é racializado. Assim, não são as políticas de ação afirmativa que irão "racializar" as relações sociais, elas já são racializadas e ignorar isto é manter as assimetrias e desigualdade de oportunidades com marcas raciais no país.
Outro argumento no manifesto é que as políticas racializadas são excludentes. Cita o apartheid e as classificações étnicas feitas na época da colonização. O argumento é matreiro: compara uma reivindicação voltada para superação das desigualdades raciais com medidas tomadas por poderes racistas para a manutenção e ampliação das hierarquias raciais. Tem um fundo cristão neste argumento. Pedem para que a população negra, diante da violência que sofre do sistema, aja como Jesus Cristo: diante do tapa recebido, ofereça outra face.
Mas a lógica reacionária se mostra quando o texto do manifesto considera "um avanço" as declarações de inconstitucionalida de feitas pela Suprema Corte dos EUA das ações afirmativas naquele país. Não informam, os manifestantes, que esta ação da Suprema Corte ocorre dentro de um retrocesso conservador nos últimos anos nos EUA que tem como conseqüência o aprofundamento das desigualdades sociais naquele país, a concentração de renda e a emergência de uma extrema-direita cujas políticas são danosas para todos os povos. Não me surpreende que Reinaldo Azevedo defenda isto. Mas será que José Arbex, Ferreira Gullar, César Benjamin e outros endossam isto ou a paixão anti-cotas os faz aliar-se a idéias e pessoas conservadoras deste tipo?
E, finalmente, qual é a alternativa apresentada pelos signatários? Esperar uma melhora no ensino público para que as condições sejam iguais? Talvez ignorem os estudos feitos pelo economista Ricardo Henriques, do Ipea(Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) de que a manutenção do atual grau de evolução dos indicadores sociais da população negra fará o conjunto deste segmento social atingir o atual estágio em que se encontra a população branca em 32 ANOS!!! Traduzindo: se a população branca ficasse parada nos atuais indicadores sociais e a população negra continuasse o ritmo atual de melhoria das suas condições sociais, em 32 ANOS TERÍAMOS A PRETENSA EQÜIDADE SOCIAL!!! Seria interessante estes intelectuais irem pedir à população negra para que aguardem uns 30 anos para conseguir a sua cidadania (só 30 anos, isto não é nada!).
O debate anti-racista no Brasil incomoda pelo seguinte motivo: combater o racismo implica, necessariamente, em redistribuir riquezas e isto significa perda de privilégios para alguns. Enquanto o combate ao racismo fica no aspecto etéreo, sem foco, como mera denúncia, a solidariedade é enorme. Não é politicamente correto assumir-se como racista, principalmente para quem se diz "intelectual" e "de esquerda". Mas incomoda - e muito - quando o movimento negro supera a fase da denúncia e passa a exigir a eqüidade num país em que o bem estar é um privilégio e a socialização dele implica em perder privilégios. Em casos como este, fronteiras ideológicas se esvaem e esta aliança - que parece impossível de acontecer - não soa tanto estranha. E muitas figuras que, pelas suas posições político-ideoló gicas jamais teriam visibilidade na Globo, tiveram seus minutos de fama no Jornal Nacional.
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Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, presidente do Celacc e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (Neinb/USP).
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