Acredite quem quiser
A política costuma ser um terreno fértil para a cara- de-pau, mas toda a enrolação em torno da CPMF beirou o surrealismo. Poucas vezes se mentiu tanto e com tanta desfaçatez
Por Gustavo Krieger
gustavo.krieger@correioweb.com.br
Ano passado, perdi alguns meses da minha vida cobrindo as negociações sobre a emenda constitucional que prorrogava até 2011 a cobrança da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF). Foi uma das poucas vezes em que pensei em pedir o pagamento de algum tipo de adicional de insalubridade sobre o meu salário. A política costuma ser um terreno fértil para a cara-de-pau, mas toda a enrolação em torno da CPMF beirou o surrealismo. Poucas vezes se mentiu tanto e com tanta desfaçatez nos dois lados da cena política.
Só para lembrar. O governo dizia que o fim da CPMF significaria o caos na saúde. Na tribuna, parlamentares alinhados ao Palácio do Planalto ameaçavam com um quadro dantesco, de macas empilhadas na frente de hospitais públicos e doentes morrendo por falta de dinheiro para comprar remédios. A oposição, ao contrário, previa um novo país. Os preços cairiam, os brasileiros teriam mais dinheiro no bolso, a economia reagiria com impressionante vitalidade.
Quem estava certo? Ninguém. A saúde pública continua a funcionar nos mesmos moldes dos tempos da CPMF. E os preços não caíram. Ao contrário, a inflação até subiu nos últimos meses. A parcela que era recolhida como CPMF foi incorporada aos lucros. O país seguiu seu caminho, apesar dos meses perdidos em proselitismo de governo e oposição. Agora, ameaçam encenar de novo a mesma novela. Por favor, vamos mudar o filme…
E o pior é que a coisa já começa no mesmo tom de farsa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva jura que não quer o novo imposto. Se fosse verdade, seria a primeira vez que um governante rejeita a idéia de encher os cofres de sua administração. Mas não é verdade. Lula quer a CPMF. Só não quer o desgaste de patrocinar sua recriação. Prefere transferir a conta política para o Congresso. Surge então a situação surreal. Todos os líderes governistas se reúnem para um almoço e fecham questão em torno de uma proposta que o governo jura não patrocinar. Tá bom, então.
Isso sem falar que os governistas descobriram num passe de mágica que dá para criar a CPMF por lei complementar e não por emenda constitucional, como foi tentado no ano passado. Há pareceres jurídicos nesse sentido e juristas concordam com a tese. Mas que tem um desconfortável jeito de manobra para mudar as regras, tem. Ano passado, o governo não conseguiu os 60% dos votos do Congresso necessários para manter o tributo. Agora, seus líderes dizem ser possível recriá-lo com uma lei aprovada pela maioria absoluta.
Do outro lado, estão os partidos de oposição, com o DEM e PSDB à frente, subitamente transformados em patronos da causa da saúde no Brasil. Ano passado, negaram a aprovação do tributo que financiava o setor, cortando cerca de R$ 20 bilhões de arrecadação por ano. Agora, uniram-se aos parlamentares petistas para finalmente fazer andar o projeto que regulamenta a emenda constitucional 29 e garante mais recursos para a saúde, numa conta que pode chegar a R$ 27 bilhões em 2012.
Os oposicionistas dirão que sua atitude é coerente. Que o governo tem um excesso de arrecadação previsto para este ano de R$ 18 bilhões, mesmo com o fim da CPMF e que esse dinheiro é mais que suficiente para bancar as contas da saúde. Muito bonito, mas, uma vez mais, não é verdade. Tudo não passa de cálculo político, feito tendo em mente as eleições de 2010 e a popularidade de Lula. Quando derrubaram a CPMF, no final do ano passado, os oposicionistas planejavam retirar do presidente dinheiro que poderia ser investido em obras e programas sociais. Esperavam que, com menos dinheiro, Lula fosse obrigado a recuar. Hoje apóiam a regulamentação da emenda 29 porque querem colocar Lula numa posição delicada. Se a proposta for aprovada, o presidente terá uma escolha difícil. Ou veta o projeto, que sempre foi uma bandeira do seu partido, ou terá de retirar o dinheiro de outro lugar para pagar a conta. Não há como o governo sair vencedor dessa encrenca.
É bom perder as esperanças de que essa discussão seja feita com um mínimo de sensatez. Os governistas já hastearam suas bandeiras e partiram em defesa da volta do imposto. Os oposicionistas vestiram mais uma vez o uniforme de defensores do consumidor e prometem combater a fúria tributária oficial. A temporada de proselitismo está aberta. Com ampla cobertura da mídia, é claro. Como pano de fundo, esquecida a não ser como munição na guerra de discursos, a saúde pública. E os milhões de brasileiros que dependem dela para sobreviver.
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