sábado, 7 de fevereiro de 2009

O Dom da Paz

Dizem que DOM Hélder Câmara não gostava de ser chamado de Dom, afinal esse pronome denota nobreza e se trata de um arcaísmo remanescente da época áurea e senhorial do Vaticano, já que a face opressora do Vaticano continua a mesma. No entanto, Dom além de pronome também é um verbo. Segundo o antropólogo Mauss, em sua obra clássica o "Ensaio sobre a Dádiva" fundadora da antropologia: o que funda a sociedade não é a renúncia que dá origem ao Estado, mas o estabelecimento de uma forma de troca na qual os homens podem "opor-se sem massacrar-se e dar-se sem sacrificarem-se uns aos outros" (1974:183). É desta forma verbal e não pronominal que a palavra DOM cabe a medida a esse notável brasileiro que se vivo fosse completaria hoje 100 anos: Hélder Câmara.
Sobre Dom Hélder existem muitos e muitos e muitos escritos, ainda que sempre insuficientes para registrar tamanho comportamento dadivoso. Assim não repetirei aqui os feitos que vocês conhecem de outros lugares, suas indicações ao Nobel da Paz, sua denuncia em Paris que a ditadura brasileira torturava (o primeiro a fazê-lo publicamente), os jovens que acolheu na luta, o apoio aos movimentos sociais e de base. Não vou falar sobre nada disso, pois que é de conhecimento público. Publico aqui então trechos do depoimento do jornalista Noblat a respeito da coragem dadivosa de DOM HÉLDER CÂMARA.
" (...) Fazia pouco mais de quatro anos que o país vivia sob uma ditadura militar de natureza branda, envergonhada. Centenas de pessoas foram perseguidas e presas, parlamentares perderam o mandato e os direitos políticos por dez anos, juízes considerados liberais demais acabaram aposentados antes do tempo, e a imprensa que apoiara a deposição do presidente João Goulart se autocensurava para evitar a ação direta de censores. Ninguém era capaz de prever que dali a seis meses a ditadura tiraria a máscara de uma vez e, brutalmente, se assumiria como tal.
O silêncio da rua cedeu lugar ao leve barulho provocado pelo arrastar das botas dos soldados no asfalto à medida que uma mancha pequena e sem contornos definidos ia se infiltrando no meio deles. A mancha cresceu quando estava mais próxima do portão principal da universidade e deu para ver que se tratava de uma pessoa de baixa estatura. Não parecia ser um militar. A certa altura, concluí que não era um militar. Mas naquelas circunstâncias, à passagem de quem uma tropa disciplinada e prestes a recorrer à violência abriria espaço de modo tão espontâneo?
“Com licença, boa noite... Com licença, boa noite”, sussurrava o dono da voz ao tocar de leve no braço de um ou de outro soldado perplexo. O homem baixinho estava só. Usava uma boina e uma capa de lã que lhe deixava à mostra apenas os sapatos de couro preto. Momentos antes correra de boca em boca dentro do pátio da universidade a notícia de que ele estava indo ao encontro dos estudantes. Parte dos estudantes se agrupou em torno do portão para vê-lo entrar. Os líderes da passeata frustrada se reuniram num canto para discutir o que fazer.
De pé sobre uma cadeira e diante dos estudantes sentados no chão do hall de entrada da universidade, o homem baixinho tirou a boina da cabeça com um largo gesto teatral e disse num inconfundível sotaque cearense do qual jamais se livrou ou quis se livrar:
- Eu vim para ficar ao lado de vocês...
A platéia levantou-se, começou a aplaudir e a gritar.
O homem baixinho fez um gesto para que cessasse o barulho e para que todos se sentassem no chão novamente. Em seguida, disse:
- Alegro-me que padres, professores e operários estejam unidos com vocês, pois sua luta é a luta do povo. Eu só sairei daqui na companhia de vocês...
Novamente a platéia se pôs de pé, o aplaudiu em delírio e, a um novo gesto dele, fez silêncio e se sentou no chão.
Ex-bispo auxiliar do Rio de Janeiro, arcebispo de Olinda e Recife desde abril de 1964, em rota de colisão com os militares que mandavam no país, dom Hélder Pessoa Câmara, a figura mais carismática da Igreja Católica na segunda metade do século passado, empregou o resto do seu discurso para apascentar o espírito daqueles jovens que temiam um confronto violento com a polícia. Por fim, ofereceu-se para negociar com o governo o fim do cerco à universidade e a libertação de nove estudantes que tinham sido presos durante a passeata.
(...)
Enquanto esperava, não sabia que a pouco mais de dez quilômetros dali, sozinho em sua acanhada casa nos fundos da igreja de Nossa Senhora das Fronteiras, dom Hélder registrava em carta para um grupo de amigos o que acabara de acontecer. Era uma espécie de diário que ele começara a escrever ainda como bispo auxiliar do Rio de Janeiro nos anos 50. A carta daquele dia, datada de 27/28.6.68 está identificada no alto à esquerda como “407a. Circular”. Sobre a passeata reprimida pela polícia, dom Hélder escreveu: “O pau cantou e houve prisões numerosas”.
Mais adiante, disse por que fora ao encontro dos estudantes:
- 22h. Soube do cerco à Católica. Fui chamado. Não vacilei. Há segundos que decidem a vida. Se falhasse naquele instante com os universitários estaria liquidado para eles. Parti imediatamente. Atravessei as tropas sem que ninguém me interrompesse ou interpelasse. Os oficiais me cumprimentavam e os soldados, visivelmente, me saudavam com carinho. Os soldados, coitados, de cassetete ou de metralhadora e com amplos escudos romanos...
O “Jornal do Commercio” “furou” o “Diário” naquele dia. Sua manchete de capa foi “Diálogo Hélder-Salviano põe fim a cerco da Católica”. Salviano Machado era o governador em exercício. O “Diário” publicou que a universidade permanecera cercada até o início da madrugada. Ninguém que “não tenha sofrido” a “paixão insaciável” do jornalismo pode “conceber, sequer, o que é essa palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo das primícias, a demolição moral do fracasso”, escreveu anos depois o romancista colombiano Gabriel García Márquez.

Trecho do terceiro capítulo do livro "Memórias Profissionais - O que é ser jornalista", editado pela Record.

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