terça-feira, 8 de julho de 2008

O Haiti não é aqui

O Haiti não é aqui

Por Maria Inês Nassif - Valor Econômico - Quinta-Feira, 19 de junho de 2008.

Marcos Paulo da Silva Correia, David Wilson Florêncio e Wellington Gonzaga da Costa tinham tudo para virar estatística: eram homens negros, pobres e favelados. E, no Brasil, ser jovem, negro, pobre e favelado são requisitos para figurar na lista de mortos por violência

Segundo o estudo do Ipea 'juventude e políticas sociais no Brasil', divulgado em maio, dos 60 mil homens jovens que morreram entre 2003 e 2005, 78% deles foram por 'fatores externos' - homicídios, suicídios e acidentes de trânsito. Entre os jovens de 18 a 24 anos negros, a taxa de mortalidade chegou a 325,04 para cada 100 mil jovens negros; para os jovens brancos, é de 294,58 por 100 mil jovens brancos. De acordo com as tábuas de mortalidade do IBGE de 2006, a chance de um homem de 20 anos morrer sem passar para o grupo etário seguinte (de 25 a 29 anos) era 4,1 vezes maior do que a de uma mulher com a mesma idade.

A morte violenta dos três homens jovens e negros é, portanto, um retrato sem retoques da realidade. A forma como morreram, uma realidade mais dura ainda: eles foram entregues por uma tropa do Exército a uma facção criminosa rival à que domina o Morro da Providência, onde moravam; foram torturados pelos traficantes e mortos. Seus corpos, jogados num lixão. E os moradores da favela que protestaram contra os militares foram reprimidos pelo mesmo Exército que vitimou seus moradores.

Vivos, os favelados do Morro da Previdência eram apenas três entre os mais de um milhão de favelados que se comprimem nas cerca de 650 mil favelas do Rio. Mortos, mostram tantas fragilidades do sistema social, da política de segurança e do próprio aparelho militar que se tornam um caso de alto poder simbólico. O caso desnuda a ausência do Estado nos aglomerados urbanos onde vive a população pobre, que resultou no domínio de regiões inteiras por traficantes ou milicianos ligados às polícias - não continuassem as favelas sob domínio do tráfico, o Morro da Providência não seria território de uma facção de traficantes, nem existiria uma outra, rival a esta no Morro da Mineira, para entregar os meninos para 'corretivo'. Expõe a forma como o Estado chega à favela já dominada pelo crime - o Exército estava lá como representante do Estado, o que não é comum, ajudando em obras eleitorais do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), mais incomum ainda. E estava lá porque o senador se entendeu com as autoridades federais e decidiu a ocupação militar de uma favela ao arrepio das autoridades locais - prefeito e governador - e do sistema estadual de segurança pública. O Exército aceitou desempenhar o papel de segurança privada de um projeto que apenas não é particular do senador Crivella porque é pago com dinheiro público, do Ministério das Cidades. Nessa função, a Força determinou, sem ordem da Justiça ou das autoridades competentes, toque de recolher e bloqueio de entradas da favela. E alguns de seus integrantes julgaram ter poder de vida e morte sobre os moradores. A sociedade só tomou conta do poder que se autodelegou o Exército na hora em que o morro desceu para protestar contra a morte de seus jovens.

Jovem pobre tem menos chance de envelhecer
É uma sucessão de fatos incomuns que mostra, ironicamente, o que é comum: o aparelhamento privado de recursos públicos e do próprio Exército; o domínio do conceito de militarização da segurança pública; o alto grau de autonomia da instituição militar em relação aos poderes democraticamente constituídos; a criminalização da pobreza, que começa como um senso comum das elites do país e é incorporada como diretriz de ação repressiva contra a população pobre (e, em especial, contra a população pobre e negra); a falência da segurança pública destinada à população de baixa renda (a segurança, hoje, é vista exclusivamente como a defesa da propriedade dos mais ricos, não como a defesa da vida dos mais pobres - que, aliás, são vitimados, estejam no crime ou não, pela política de segurança à propriedade) ; a convivência dos poderes constituídos com o crime organizado, como se essa fosse sempre uma alternativa, diante da incapacidade de reprimi-lo.

A lista pode ser mais extensa do que essa. Diante dela, cabem vários debates. Um deles é em torno da constatação de que existe um claro corte social nas ações de repressão e segurança. O negro pobre brasileiro (a do branco pobre também, mas em menor grau) tem cada vez mais o direito à própria vida relativizado. É normal, após acontecimentos como esse, a opinião pública letrada se debruçar sobre a folha corrida dos mortos - a prova de alguma remota ligação com o crime já configuraria uma justificativa para as execuções sumárias, como se jovens negros e favelados, se criminosos, estivessem enquadrados numa lei não escrita de sentenciamento por morte sem direito a julgamento. Ignora-se também o fato de que, dada a facilidade de convivência do poder público com o crime organizado (os meninos foram entregues por militares a uma facção criminosa), é se supor que os favelados sem envolvimento com o crime sejam mais vulneráveis à ação repressiva, já que não têm nenhuma moeda de troca a oferecer aos integrantes do aparelho repressivo. Segundo o Mapa da Violência de 2006, 60% das vítimas de homicídios não atuavam profissionalmente no crime.

A população de baixa renda convive geograficamente com o tráfico. Os seus jovens, se são cooptados pelo crime, vão morrer jovens, quer pela polícia, quer pelo próprio tráfico. Os que não se envolvem no crime estão na linha de tiro do tráfico e da polícia. A segregação social chegou a tal grau que a condição social define hoje as chances de sobrevivência de um jovem. Isso é implicitamente reconhecido pelo Pograma Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), quando ele define uma linha de ação voltada especialmente para a inclusão social dos jovens em situação de risco. É totalmente incoerente com o objetivo do programa, todavia, colocar tropas do Exército sem qualquer preparo para o atendimento comunitário numa favela. O mito da intervenção militar no Haiti está contaminando cabeças. O Rio não é o Haiti. O Exército não é polícia. E 'segurança interna' não é poder discricionário sobre a vida de uma população com alto grau de vulnerabilidade.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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