terça-feira, 15 de julho de 2008

Dossie Gilmar Mendes

Como percebeu de forma sagaz o RICARDO EM SEU COMENTÁRIO, o post abaixo tornou-se um dôssie sobre as atitudes do supremo Gilmar Mendes, como o post ficou agigantado demais e de difícil, leitura criei esse novo post.

Maierovitch: Gilmar Mendes está "extrapolando"

Para o juiz aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Wálter Maierovitch, o novo habeas corpus concedido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, ao banqueiro Daniel Dantas mostra que o presidente do STF está "extrapolando suas funções".


- Ele (Gilmar Mendes) está atuando com abuso de direito. Está extrapolando as funções dele. O Supremo virou ele - critica.

Presidente e fundador do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais, Maierovitch diz que já é hora de pensar num impeachment do presidente do presidente do Supremo.

- Para o presidente da Republicas tem impeachment, o ministro Celso Mello considera que pode haver impeachment para ministros do próprio Supremo. Está na hora de se pensar num impeachment do Gilmar Mendes.

Leia a seguir a entrevista com Wálter Maierovtich:

Terra Magazine - Como avalia a nova libertação de Daniel Dantas?
Wálter Maierovitch - Eu vejo isso da pior forma possivel. Pelo seguinte: a prisão preventiva é necessária. O Daniel Dantas até falou hoje que ia abrir a boca. Se trata de uma potentíssima organização criminosa que age ininterruptamente. Os documentos comprovam o poder corruptor dela.

Na decisão, Gilmar Mendes argumenta que "não há fatos novos de relevância suficiente a permitir a nova ordem de prisão expedida".
Os fatos novos existem, tanto que foram usados documentos aprendidos nas diligências da Polícia Federal. Os institutos são diferentes: a prisão temporária garante o sucesso das operações, a preventiva é para garantir a ordem pública. Outra coisa: o Supremo é um órgão colegiado. O Gilmar Mendes é um preparador do que os outros vão julgar. Ele está contrariando a jurisprudência, que diz que liminar em habeas corpus liberatório só pode ser concedida quando há abuso evidente. Quando não é evidente, tem que mandar para o plenário do Supremo. Ele está atuando com abuso de direito. Está extrapolando as funções dele. O Supremo virou ele.

Imagine alguém que esteja preso por homicídio. Aí a vítima aparece viva. Tem que assinar uma liminar para o acusado pelo homicidio sair da cadeia. Aí sim. Ele (Gilmar Mendes) tá exagerando nisso. Existe prova nova, não só isso, como também se aplicou outra forma de cautela, que é a prisão preventiva. E está evidente que Dantas em liberdade irá intimidar e atrapalhar as investigações.

Um assessor de Daniel Dantas disse que seria "fácil" resolver uma eventual indiciação de Daniel Dantas no STF. Isso não constrange o ministro Gilmar Mendes?
Isso pode ser uma bravata, mas o que dizer de um fato tão grave quanto esse, que é quando a Ellen Gracie impediu a abertura do disco rigído do oportunity. O Daniel Dantas já foi muito beneficiado pela Justiça. Para o presidente da Republica tem impeachment, o ministro Celso Mello considera que pode haver impeachment para ministros do próprio Supremo. Está na hora de se pensar num impeachment do Gilmar Mendes.

Gilmar Mendes errou
Luís Nassif

Há uma questão de princípio e uma questão legal no caso Gilmar Mendes.

A questão de princípio é sobre o abuso ou não das operações policiais e da ação do Ministério Público. Os críticos apontam para a espetacularização, o uso das algemas, o abuso nas escutas. Os defensores sustentam ser a única maneira de prestar contas à opinião pública e legitimar as operações. Acompanhando os bastidores da Operação Satiagraha, principalmente através dos relatos de Bob Fernandes, do Terra Magazine, fica claro que, se não tivesse havido a “espetacularização” e ganhado a opinião pública, teria fracassado. A soma de interesses que Daniel Dantas conseguiu articular é de tal forma variada e influente, que os agentes da operação seriam massacrados em pouco tempo.

É por isso que o mundo jurídico se dividiu, ontem, entre advogados criminalistas de um lado e procuradores e juízes do outro.

Gilmar Mendes tem tradição de Ministro liberal, que se posiciona historicamente contra o que considera esses abusos. Mas, no episódio, a questão essencial é outra. Até que ponto, para combater o que ele considera abusos, Gilmaer não cometeu abuso maior ainda, indo contra o que determina a lei e a constituição?

É esse o ponto em que Gilmar naufraga. A ciência jurídica não é exata, está sujeita a interpretações. Ontem li e ouvi detidamente os argumentos de Dalmo Dallari – que considera que Mendes avançou o sinal e criou uma balbúrdia jurídica. Depois, procurei ouvir a opinião de outro Ministro do STF, liberal.

Sua opinião é a de que Gilmar Mendes estava correto ao conceder o primeiro habeas corpus, mas errou pesado ao conceder o segundo. As razões que consubstanciavam o segundo eram diferentes das do primeiro. O juiz De Sanctis estava com a razão e com a lei.

Mais não avançou. Mas ficam claros alguns pontos:

1. No intuito de combater abusos, Gilmar cometeu um abuso maior. Transformou a questão em algo pessoal, atropelou as evidências ao conceder o segundo habeas corpus mostrou que estava motivado pelo sentimento de desforra, ao denunciar o juiz De Sanctis ao Conselho Nacional de Justiça.

2. Ao proceder dessa maneira, deixou que o ego atropelasse seu compromisso mais sagrado: a ordem constitucional e a imagem do STF, o tribunal máximo do país.

3. Mais: criou uma crise institucional sem precedentes ao avançar contra uma das prerrogativas do ordenamento jurídico do país: a autonomia dos juízes de primeira instância para julgar de acordo com sua própria avaliação e as prerrogativas das instâncias interemediárias.

4. Como fica agora? A rebelião de juízes e procuradores tornou-se legítima, porque o presidente do Supremo atropelou o ordenamento jurídico. Ou seja, juízes e procuradores têm, ao seu lado, a Constituição. Estão agindo em defesa do ordenamento jurídico.

5. Com sua atitude impensada, Gilmar Mendes permitiu que as suspeitas de politização do STF tornassem-se realidade, comprometendo profundamente a imagem da instituição.Não se trata meramente do clamor das turbas. Contra este, a resistência é nobre. Trata-se de um ato impensado que provocou uma balbúrdia no ordenamento jurídico do país.

6. Resta saber qual será o comportamento dos demais Ministros do Supremo: a solidariedade para com o colega ou para com o Supremo.


Ainda sobre notas oficiais

A manifestação pública da presidente do TRF-3, Marli Ferreira, não especifica o destinatário ao recomendar, em nota oficial, aos "milhares de juízes deste país" que "nunca se verguem ante interesses subalternos, pois ceder à campanha que se arma para desonrar qualquer de seus membros é amesquinhar a função judicial de aplicar e dizer o direito". A leitura feita por alguns procuradores: sem entrar no confronto com o presidente do STF, ela estaria apoiando a iniciativa dos juízes de primeiro grau solidários com De Sanctis.

Sabe-se que Marli Ferreira e a vice-presidente, Suzana Camargo, que teria informado Gilmar Mendes de suposto monitoramento de seu gabinete, não são afinadas (Suzana Camargo assumiu a vice-presidência em cumprimento de decisão judicial).

A relevância da nota assinada pela presidente do TRF-3 pode ser medida por outro fato: nem quando a Polícia Federal fez busca e apreensão nos gabinetes de três desembargadores, na Operação Têmis, houve reação pública imediata do tribunal como a que aconteceu agora.

O conceito da presidente do TRF-3 entre membros do MPF cresceu.


"Tenho a honra de integrar o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul desde 1991. Nesse período, tendo despachado e sentenciado milhares de processos, tenho convicção de que cometi muito erros no exercício da jurisdição. Muitos desse erros, felizmente, foram corrigidos pelo Tribunal de Justiça gaúcho, através da modificação das minhas decisões. Houve, porém, casos em que os argumentos utilizados pelos desembargadores não me convenceram do desacerto dos meus próprios fundamentos. Não obstante, sempre cumpri o meu dever constitucional, assegurando o cumprimento das decisões da segunda instância, como determina nosso sistema judicial.

Entre tantas outras decisões jurisdicionais, são comuns as situações em que após deferir uma medida liminar que veio a ser revogada pelo segundo grau de jurisdição, restabeleci a medida em primeiro grau, a partir de novas evidências surgidas em momento processual posterior, conforme admitido em nosso ordenamento jurídico. Sempre fui livre para decidir e sempre reconheci e respeitei a liberdade dos desembargadores para concordar ou discordar dos fundamentos das minhas decisões, cada qual cumprindo sua soberana função no Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.

São dezessete anos de exercício da magistratura, sempre sob a fiscalização da Corregedoria-Geral da Justiça. Nesse período enfrentei diversas cobranças administrativas que diziam respeito à produtividade, à pauta de audiências, à eventual insatisfação das partes ou de advogados relativamente à minha forma de atuar. Cobranças, bem entendido, que diziam respeito exclusivamente aos aspectos administrativos da gestão judicial.

Após todo esse tempo, orgulho-me de poder afirmar que jamais sofri qualquer constrangimento de parte da Corregedoria-Geral da Justiça no que pertine à minha independência jurisdicional. Respeito esse dirigido não apenas a minha pessoa, mas às prerrogativas constitucionais que se traduzem em garantia à população, de que minhas decisões sempre foram independentes, ainda que passíveis de recurso ao segundo grau de jurisdição.

Por essa razão, sinto-me compelido a manifestar a Vossa Excelência a minha perplexidade ante a noticiada postura de Vossa Excelência, enquanto presidente do Supremo Tribunal Federal, de converter sua discordância quanto à decisão de um magistrado de primeiro grau, em atitude persecutória junto ao Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle externo do âmbito administrativo do Poder Judiciário.

Tenho a convicção de que se trata de um mal-entendido decorrente de falha de comunicação, passível de rápido e eficaz esclarecimento. Entretanto, para que não paire dúvidas na sociedade brasileira sobre o respeito do presidente do Supremo Tribunal Federal à independência jurisdicional dos magistrados, impõe-se que Vossa Excelência venha a público explicitar que não haverá qualquer reação de natureza administrativa à recente decisão do colega Fausto Martin De Sanctis, sob pena de se caracterizar inaceitável ameaça à independência de toda a magistratura".

Roberto Arriada Lorea
Juiz de Direito

Julho do Judiciário & "Tortuosos alvarás"

Sob o título "O Julho da Justiça", o procurador da República Vladimir Aras escreveu o artigo abaixo, que trata da "indignação generalizada" com as decisões do presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, no episódio envolvendo o banqueiro Daniel Dantas:

"Perdi algumas horas a mais de sono esta noite, além das que me têm sido adoravelmente furtadas por minha filhinha recém-nascida, e naveguei. No mar digital, há uma indignação generalizada com as decisões de Gilmar Ferreira Mendes sobre a Operação Sathiagraha.

Lendo os blogs de política (Azenha, Frederico, Josias, Nassif, PHA) e os diários on-line vi várias centenas de mensagens de pessoas de todas as partes do País que não se conformam com os tortuosos alvarás em habeas corpus concedidos pelo ministro Gilmar Ferreira Mendes. Não se trata de inconformismo de partes vencidas ou de uma jamais vista união de corporações contra um presidente do STF. Muitos brasileiros estão muito mais do que revoltados com o que se viu. Com esse foro por prerrogativa de classe social. Outros cidadãos são sarcásticos com o STF e apontam-lhe mazelas anteriores: Maluf e Cacciola. Dezenas mostram-se perplexos. Mas a maioria revela que perdeu de vez a crença na Justiça do Brasil. E isto é ruim para todos nós.

Estão trincados os cristais desse Olimpo, onde Zeus atende pelo prenome de Gilmar. Somente os bajuladores, os ingênuos e os cínicos não o perceberam. Queiram ou não, nos últimos dias Gilmar Ferreira Mendes deitou uma mácula indelével em sua presidência no STF, que é agora tido pela Nação como um tribunal de ricos, uma corte de privilegiados, como eram as cortes absolutistas, sem igualdade ou outros pudores republicanos. Foi desmascarada a farsa dos ritos legais, que muitos juristas só utilizam para ocultar engodos judiciários, ou para protelar decisões úteis à sociedade, deixando-as para as calendas gregas. Têmis-Justiça tirou sua venda e a colocou na boca de Daniel Valente Dantas. “Não fale!”. E todos se calaram, a começar pelos covardes. Outros aplaudiram. Na primeira fila, como beneficiários da misericórdia da cúria, estavam os cortesãos e os comensais de sempre, os tubarões e as rêmoras. Se não confiássemos na probidade de nossos ministros, os espectadores desavisados poderiam querer dar razão a Tobias Barreto, que costumava invectivar contra situações de compadrio, dizendo preferir uma Justiça 'peituda e vendada' a uma justiça 'peitada e vendida'.

O fato é que os cidadãos fomos vítimas da vaidade e do voluntarismo de quem, como mau sacerdote, invoca em vão e de forma seletiva o santo nome do Estado de Direito. Não foi o Juiz Federal o atingido. Não foram o Ministério Público e a Polícia os ofendidos. Fomos nós cidadãos. Um Nero não nos envergonharia tanto quanto nos envergonhou o ministro Gilmar Ferreira Mendes, ao nos esbofetear à luz do dia com artimanhas mal-ajambradas, como se não fosse ele um reconhecido constitucionalista; como se fosse um jurista escolado nos desvãos da vida pública. Pois ele abandonou o rito, olvidou a forma, descumpriu a liturgia. Rasgou os códigos. Os fatos, estes sim retumbantes e espetaculares, foram ignorados sem solenidade por alguém que deveria ser o esteio da credibilidade da Justiça. Foram mandadas à lama todas as premissas com as quais labutamos todos os dias. Com isso, Gilmar Ferreira Mendes também aniquilou muitas das certezas técnicas que cultivamos à sombra do ideal de eqüidade. Pior do que tudo isso, Gilmar Ferreira Mendes vampirizou nossa energia, subtraiu de nós uma porção significativa de fé, de fé no que fazemos.

Em meio aos lamentos de classe, ao desânimo profissional e às angústias de cidadão, assistimos aos lastimáveis 'deixa disso' e 'abafa o caso' vindos de uns poucos jornalistas, de argumentos jurídicos tão sólidos quanto um pudim num terremoto. Vemos também alguns profissionais desorientados e outros financeiramente guiados, em regra mercadores do Direito, defenderem o indefensável: que há correção na supressão de instâncias, num salto triplo digno dos jogos olímpicos que se avizinham; que não havia motivos para a prisão do banqueiro corruptor (que outros mais queriam?); que a verborragia do ministro não o incapacitava a decidir; e que não houve atentado contra a independência judicial, este que é um dos mais valiosos suportes de uma democracia.

Confesso que desanimei. O choro de minha filha me tirou do transe astênico, e pude ver que, longe dos corporativismos próprios de um embate como este, os cidadãos comuns já faziam surgir novo alento. Pontos de protesto espalharam-se pelo ciberespaço. Pontos de luz.

O descontrole emocional do ministro Gilmar Ferreira Mendes não é de hoje. 'Manicômio judiciário', 'Ministério Público nazista' e 'Polícia gângster' são adjetivos que ele apôs às instituições brasileiras. Na Operação Sathiagraha, sua falta de decoro alcançou limites não imaginados. Gilmar Ferreira Mendes é muito pequeno para o assento que ocupa, já denunciava Dallari. Agora, a raiva cívica está aí.

Neste mês de inúmeras efemérides, em que se comemoram em uma só quinzena o dia da Libertação Nacional, na Bahia (O Dois de Julho), a Independência norte-americana no 4 de Julho e a Revolução Constitucionalista de 9 de julho de 1932, vimos o eclipse de utopias que cultivamos com o mesmo desvelo de quem embala um bem amado. Findamos a semana tendo de presenciar, em pleno Dia da Pizza, a iniqüidade refestelar-se nos salões da Suprema Corte. Mas o dia 14 de Julho logo virá. Quem sabe possamos ter, diante do STF e dos tribunais do Brasil, uma mobilização cívica, algo com um dia da Bastilha?"

Sérgio Moro vê "risco à independência judicial"

Do juiz federal Sergio Fernando Moro, de Curitiba (PR), sobre a as duas decisões do ministro Gilmar Mendes, ao cassar a prisão temporária e a prisão preventiva do banqueiro Daniel Dantas:

"A maior ameaça à independência judicial e, por conseguinte, às garantias democráticas, é proveniente, infelizmente e atualmente, do Chefe do Poder Judiciário.

Ao estender a cassação da prisão temporária de Daniel Dantas a Naji Nahas e outros, o Ministro Chefe do Poder Judiciário não se limitou ao seu mister, mas também determinou a expedição de cópias de suas decisões e da decisão atacada a órgãos com competência disciplinar no Judiciário.

Ao cassar a prisão preventiva decretada, o Ministro Chefe do Poder Judiciário não se limitou ao seu mister, mas também determinou a expedição de cópias de suas decisões e da decisão atacada a órgãos com competência disciplinar no Judiciário, sob o pretexto de desobediência
indireta à decisão anterior do próprio Ministro Chefe.

É inconcebível que o Chefe do Poder Judiciário, no STJ e no CNJ, que tem o dever de garantir a independência judicial, pretenda, por duas vezes, punir disciplinarmente quem entenda diferentemente dele, ressuscitando o crime de hermenêutica.

Sem entrar no mérito se as cassações foram certas ou erradas, o que pode ser avaliado independentemente de quaisquer comentários, é inconcebível que o juiz que cumpre o seu dever seja ameaçado pelo Chefe do Poder Judiciário, apenas porque este discorda de seu entendimento.

A prevalecer tal providência, em breve, no próprio STF, os responsáveis por votos vencidos ficarão sujeitos à retaliação disciplinar.

Como já foi dito em outras manifestações, é de fato um dia de luto para o Poder Judiciário e para as instituições democráticas. Não é possível calar sobre tais fatos.

Meus pêsames a todos os juízes".


O presidente do STF e o porteiro de Kafka

O artigo a seguir, sob o título "Gilmar Mendes e o Porteiro de Kafka", é de autoria de Luis Manuel Fonseca Pires, juiz de Direito no Estado de São Paulo, doutorando e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. O autor é professor de Direito Administrativo e juiz-docente formador da Escola Paulista da Magistratura:

"O embate judicial travado com o envolvimento de afamadas personalidades da elite econômica, social e política do país, como o banqueiro Daniel Dantas, o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, e o investidor Naji Nahas merece sérias reflexões sobre o papel que se dispõe o ministro Gilmar Mendes, protagonista de um momento histórico de vergonha para o Brasil.

Sem dúvida alguma há espaços legítimos de discussão jurídica – que em tudo e por tudo interessam à sociedade –, como se a polícia deve, ou não, usar algemas (em todos os casos, e não só quando os acusados são detentores de riqueza ou poder), e se deve comunicar a mídia antes de alguma ação ou mesmo expor os suspeitos quando a imprensa descobre e consegue acompanhar a operação.

Mas o ministro Gilmar Mendes tem utilizado destes tópicos para inexplicavelmente encampar uma cruzada contra o juiz Fausto Martin De Sanctis e a independência do Judiciário – independência esta da qual depende o Estado para efetivamente ser democrático e de direito.

A “espetacularização” foi palavra logo anunciada pelo Ministro Gilmar Mendes contra a Polícia Federal ao saber da ação policial pela mídia (e não em processo algum sob a sua responsabilidade). Desde logo emitiu juízo de valor sem ter acompanhado as diligências, sem antes ouvir os delegados e os policiais e avaliar, por exemplo, se a resistência oferecida pelos seguranças de um dos acusados justificaria, ao menos em relação a este, o uso de algemas.

No entanto, a “espetacularização” não se encontra nestes espaços legítimos de discussão jurídica que acima registrei, mas sim numa série de inusitados comportamentos do ministro Gilmar Mendes. Comportamentos estranhos a quem não é operador do direito (juiz, advogado, promotor de justiça, juristas etc), comportamentos ainda mais espantosos para quem é operador do direito.

Talvez a “espetacularização” então se apresente numa série de fatos objetivos que a comunidade jurídica tem constantemente questionado.

Exemplifico:

a) a súbita e expedita prolação da decisão judicial pelo Ministro, em menos de 24h, e isto quando há uma infinidade de processos, mesmo de habeas corpus, que contra pessoas não conhecidas ou influentes no meio político e econômico o julgamento nem próximo passa por tão eficiente prestação jurisdicional;

b) a requisição pessoal, pelo Ministro, de funcionários do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, em pleno feriado (9 de julho), para tomarem providências em relação ao caso, como se para todos os outros habeas corpus de ilustres desconhecidos o Ministro se dedicasse com o mesmo afinco;

c) a decisão monocrática (apenas pelo Ministro) sem submeter o julgamento ao plenário (aos demais Ministros); d) a supressão de instâncias, pois o Ministro viu-se logo competente para conhecer e julgar o habeas corpus sem que antes o Tribunal Regional Federal apreciasse qualquer recurso do juiz de primeiro grau, e com a lembrança de que Daniel Dantas não é detentor de qualquer cargo político que justifique o foro privilegiado junto ao Supremo Tribunal Federal;

E por fim: e) em vez de simplesmente reformar a decisão de primeiro grau o Ministro resolveu oficiar à Corregedoria do Tribunal Regional Federal, ao Conselho Nacional da Magistratura e ao Conselho de Justiça Federal, como se a questão não fosse jurídica, e sim de postura funcional, como se o juiz De Sanctis tivesse cometido alguma infração administrativa.

A propósito deste último ponto o ministro Gilmar Mendes comporta-se como se fosse verdadeiro demiurgo do direito, como senhor absoluto da verdade da qual não admite divergências, como se todos os outros apontamentos que nos parágrafos anteriores assinalei não merecessem consideração, ou como se não fossem reveladores de que ele, Gilmar Mendes, também delibera e age para os operadores do direito e para a sociedade em geral de modo muito mais controvertido do que o juiz De Sancis.

Isto tudo me faz lembrar o fantástico escritor tcheco Franz Kafka que se notabilizou por retratar em sua literatura um sofrimento opressor, ao mesmo tempo simples e incompreensível, desarticulado no tempo e no espaço, uma angústia que parece não ter fim, que, se ao primeiro contato parece irreal, permeia a realidade de um modo que passa a incorporá-la em sua essência – e não precisou nascer brasileiro para inspirar-se.

É de Kafka o romance O Processo no qual se conta a fábula da Lei diante da qual está um porteiro: um homem do campo dirige-se ao porteiro e pede para acessar a lei, mas o porteiro diz que naquele momento não é possível; o homem do campo indaga se mais tarde será possível ao que o porteiro responde que sim; o homem do campo aguarda, senta-se, vez por outra se sujeita a breves interrogatórios do porteiro, a perguntas indiferentes, de quem pouco se importa com as respostas, e sempre que novamente o indaga obtém como resposta que ainda não é possível ter acesso à lei; passam-se os anos, nos primeiros há revolta por parte do homem do campo, depois se limita a resmungar, e quando está velho, próximo da morte, ocorre-lhe uma pergunta que até então não fizera ao porteiro: “Todos aspiram à lei. Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?”. O porteiro, impaciente, responde: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”.

Como presidente do Supremo Tribunal Federal, como último e mais alto porteiro do acesso à Justiça, deveria o Ministro Gilmar Mendes reconhecer que quem cometeu algum “desrespeito” foi ele próprio ao atentar contra a independência do Judiciário, quem cometeu o “desrespeito” à sociedade foi ele ao personalizar a verdade única da justiça e pretender impô-la para além dos instrumentos legítimos (com a determinação de acompanhamento do caso pelas Corregedorias), e que o “desrespeito” para com o povo brasileiro reside em não se preocupar em responder às críticas que estão sendo feitas (e que acima relacionei) – a menos que pretenda o Ministro, a partir de agora, responder a todo e qualquer habeas corpus, pouco importa quem seja o paciente (mesmo que não detenha foro privilegiado), sempre em menos de 24h, e sempre convocar funcionários de Tribunais por todo o país para, ainda em feriados ou finais de semana, prestar informações e cumprir suas celeríssimas decisões.


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