Mais um bom texto do Pedro Dória, publicado no Estado de S. Paulo no último domingo:
Obama, um inventor de si mesmo
Obama, um inventor de si mesmo
Seus pais e avós fugiram de qualquer identidade cultural. Então o candidato democrata teve de criar a sua própria
Pedro Doria
Em março, quando os primeiros sermões raivosos do homem que foi seu pastor por tantos anos começaram a aparecer na televisão, Barack Obama se pôs perante as câmeras para fazer aquele que é hoje considerado o discurso mais importante desta campanha. O discurso sobre raça foi proferido com veemência e elegância durante quase 40 minutos. Obama é o candidato dos discursos, das palavras bem colocadas, entonação perfeita e carisma ímpar. Conseguiu transformar um discurso político de 40 minutos no campeão de audiência do YouTube por uma semana.
Para alguns analistas, aí está a marca do demagogo: palavras bonitas que conquistam o eleitorado pelo coração. Mas quem presta atenção nas palavras percebe que o estilo não é o de falar aquilo que o público quer ouvir. “Quando brancos sabem que um afro-americano conseguiu uma vaga na universidade por causa de uma injustiça cometida em gerações passadas, quando brancos são acusados de racismo por conta de seus medos concretos da criminalidade urbana, é natural que surja ressentimento”, disse a seus eleitores negros naquele discurso. Para falar das feridas criadas pela questão racial nos EUA, não desculpou ninguém. Esse tipo de desafio a quem o ouve é comum em Obama.
Para um grupo de exilados cubanos em Miami, no último dia 23, Obama relatou que planejava reativar os canais de diplomacia com o governo de Raúl Castro, cogitando até o fim do embargo em troca da liberação de prisioneiros políticos. “Sei que não é o que vocês querem ouvir.” A um grupo de plantadores de milho no interior de seu Estado, disse que como senador poderia até lutar pelo subsídio que os protege, mas isso não adiantaria por muito tempo. “O problema é que o etanol brasileiro é muito mais barato que o nosso”, explicou. “Vocês terão que encontrar opções mais eficientes.”
No mundo que Barack Obama vê e descreve há desafios para todos. Essa sua visão nasce de sua história pessoal - uma história que começa com fugas.
Seu avô paterno foi criado no interior do Quênia durante o Império Britânico. Viveu entre a estrutura tribal de sua pequena comunidade e o desejo de ser ocidental, descreve Obama em seu primeiro livro, A Origem dos meus Sonhos. Abandonou as roupas coloridas da tradição e vestiu a dos europeus. Serviu como cozinheiro em um navio da Marinha britânica durante a 2ª Guerra. Seu filho Barack Hussein Obama Sr, pai do candidato, foi mais longe: descobriu-se ateu, abandonou o islamismo de seu clã e mudou-se para o Havaí, onde conheceu uma moça branca com quem casou. Formou-se em economia por Harvard. Divorciou-se. De volta a seu país, serviu na alta hierarquia do governo sem jamais conseguir modernizar a estrutura social do Quênia como queria. Alcoólatra, sofreu de problemas de circulação que lhe custaram uma das pernas antes de sua morte prematura, em 1982, aos 46 anos.
Também o avô materno de Obama buscava algum tipo de transformação íntima. Natural do Kansas, seguiu o sonho americano de uma nova vida em direção ao Oeste. Veterano da 2ª Guerra, pingou de emprego em emprego com mulher e filha, primeiro no Texas, depois Califórnia, Estado de Washington e, finalmente, Havaí. Sua filha, Ann Dunham, manteve essa busca por uma reinvenção pessoal. O primeiro marido foi um queniano, pai de Obama, que a abandonou. O segundo era da Indonésia, para onde Ann se mudou com o filho Barack muito menino. Separada novamente, Ann morreu de câncer, aos 52 anos.
Criança, Obama viveu com a mãe na Indonésia, estudando numa escola internacional católica, depois numa islâmica. Ann não ligava para religião. Mas aí, com 13 anos, Obama quis estabilidade: adolescente, foi morar com os avós no Havaí. Para os colegas americanos, era, como se descreveria anos depois, “um menino magrelo com o nome engraçado”. Em seu livro, descreveu um envolvimento autodestrutivo com drogas - maconha, depois cocaína. À imprensa, os amigos do tempo disseram que Obama fumou, cheirou, mas não foi nada sério. Bom aluno, ganhou uma bolsa para a Universidade Colúmbia, em Nova York, onde estudou ciência política e relações internacionais. E, quando foi procurar emprego, escolheu um de assistente social em Chicago, no lado sul da cidade, conhecido pela influente comunidade negra.
Aos 22 anos, Barack Hussein Obama sentia-se um fruto de famílias em fuga que rejeitavam o passado. A seus olhos, nem os pais nem os avós foram felizes. E lá estava ele, um rapaz negro criado por brancos, chegando a um lugar novo. De volta ao Meio Oeste que seu avô abandonara, ele buscaria uma raiz, uma tradição. E duas pessoas o apresentaram a ela.
O primeiro foi Jeremiah Wright, pastor da Trinity United Church of Christ. Wright o ensinou sobre ser negro nos EUA, ofereceu uma base religiosa, apresentou Obama à comunidade e o influenciou na maneira de falar em público. A segunda pessoa foi sua mulher, Michelle. Com ela e os sogros, ele conheceu a vida de uma típica família estável da classe média negra. Já era este seu mundo quando se formou em direito, em 91, pela Universidade Harvard, considerada a melhor do mundo.
Quando, anos mais tarde, condenou a Guerra do Iraque, ele argumentaria com base nas conclusões que tirou da vida. Seus pais tentaram se reinventar abandonando as tradições e, no processo, perderam a própria identidade. A tradição é o que dá liga à sociedade. Perante a mudança, a tradição sempre resiste. Mudança, na história, vem a passos lentos. Para ele, há ingenuidade no ideal do sonho americano de que idéias, por si, causam grandes mudanças. Idéias não bastam. Barack Obama, como o descreveu Larissa MacFarquhar num perfil para a revista The New Yorker, “é profundamente conservador”. Democracia não seria simplesmente imposta num país onde ela jamais existira.
Obama é conservador na maneira de ver o mundo e a sociedade, mas um político que segue fielmente a tradição social da esquerda americana. Eleito em 1996 para o Senado Estadual de Illinois, propôs 233 leis sobre saúde pública (incluindo a tentativa de implantar um sistema universal, que foi rejeitado), 125 dedicando recursos para assistência social e 112 tratando de criminalidade, como programas de reintegração à sociedade, o alívio de penas para certos crimes e maior controle na venda de armas. Nas 823 leis que apresentou, mais da metade se inclui nesses três grupos.
No Senado dos EUA, onde atua desde 2005, se mostrou protecionista - vem de um Estado agrícola - e favorável a facilitar a vida dos imigrantes, mesmo os ilegais. É a favor do aborto, mas não rejeita de todo a pena de morte, que considera justa para os casos mais brutais, que choquem a sociedade. Votou a favor de planos de educação sexual e distribuição de contraceptivos para adolescentes, quer um projeto agressivo para cortar a emissão de carbono e deseja retirar as forças americanas do Iraque para investir na luta contra a Al-Qaeda no Afeganistão e Paquistão.
A campanha presidencial apenas começou. Não foi sem dor que ele renegou seu pastor, quase uma figura paterna, há um mês. Seu adversário republicano, John McCain, o atacará em sua disposição de negociar com ditadores, explorará sua pouca experiência em política exterior e tentará mostrar que, hábil com as palavras, Obama seduz sem substância. Também deve apresentá-lo como um radical da política negra. A proximidade com o pastor Wright torna a insinuação crível. A amizade com o casal Bernardine Dohrn e William Ayers, terroristas de esquerda nos anos 60, reforça a tese. Não bastasse, ainda há o fantasma de Tony Rezko, um de seus primeiros financiadores políticos, condenado em maio por corrupção.
A campanha presidencial de Obama é conduzida por um ex-repórter da editoria de política do jornal The Chicago Tribune, David Axelrod. Ele pretende driblar a discussão contando e recontando a história pessoal do candidato. Ao New York Times, explicou que “a história de Barack é a personificação de sua mensagem para o país, a de que com tenacidade podemos vencer as barreiras que nos dividem”. A candidatura, segundo Axelrod, é essencialmente uma aposta de que, mesmo lentamente, a história caminha para a frente e os EUA são, sim, capazes de eleger um presidente negro.
É só com sutileza que Obama trará a questão racial para a campanha. Tão logo ficou claro que seria o candidato, McCain o convidou para uma série de debates informais, ao vivo, perante grupos de eleitores em todo o país, como haviam combinado de fazer, em 1963, John Kennedy e Barry Goldwater. Obama disse que gostou da idéia, mas sugeriu que seguissem o modelo estabelecido, antes da Guerra Civil, por Abraham Lincoln e Stephen Douglas. Na verdade, são modelos iguais. Mas Lincoln foi o libertador dos escravos nos EUA. E um político de Illinois. Obama sublinha a idéia de ser sucessor natural do velho presidente.
Para alguns analistas, aí está a marca do demagogo: palavras bonitas que conquistam o eleitorado pelo coração. Mas quem presta atenção nas palavras percebe que o estilo não é o de falar aquilo que o público quer ouvir. “Quando brancos sabem que um afro-americano conseguiu uma vaga na universidade por causa de uma injustiça cometida em gerações passadas, quando brancos são acusados de racismo por conta de seus medos concretos da criminalidade urbana, é natural que surja ressentimento”, disse a seus eleitores negros naquele discurso. Para falar das feridas criadas pela questão racial nos EUA, não desculpou ninguém. Esse tipo de desafio a quem o ouve é comum em Obama.
Para um grupo de exilados cubanos em Miami, no último dia 23, Obama relatou que planejava reativar os canais de diplomacia com o governo de Raúl Castro, cogitando até o fim do embargo em troca da liberação de prisioneiros políticos. “Sei que não é o que vocês querem ouvir.” A um grupo de plantadores de milho no interior de seu Estado, disse que como senador poderia até lutar pelo subsídio que os protege, mas isso não adiantaria por muito tempo. “O problema é que o etanol brasileiro é muito mais barato que o nosso”, explicou. “Vocês terão que encontrar opções mais eficientes.”
No mundo que Barack Obama vê e descreve há desafios para todos. Essa sua visão nasce de sua história pessoal - uma história que começa com fugas.
Seu avô paterno foi criado no interior do Quênia durante o Império Britânico. Viveu entre a estrutura tribal de sua pequena comunidade e o desejo de ser ocidental, descreve Obama em seu primeiro livro, A Origem dos meus Sonhos. Abandonou as roupas coloridas da tradição e vestiu a dos europeus. Serviu como cozinheiro em um navio da Marinha britânica durante a 2ª Guerra. Seu filho Barack Hussein Obama Sr, pai do candidato, foi mais longe: descobriu-se ateu, abandonou o islamismo de seu clã e mudou-se para o Havaí, onde conheceu uma moça branca com quem casou. Formou-se em economia por Harvard. Divorciou-se. De volta a seu país, serviu na alta hierarquia do governo sem jamais conseguir modernizar a estrutura social do Quênia como queria. Alcoólatra, sofreu de problemas de circulação que lhe custaram uma das pernas antes de sua morte prematura, em 1982, aos 46 anos.
Também o avô materno de Obama buscava algum tipo de transformação íntima. Natural do Kansas, seguiu o sonho americano de uma nova vida em direção ao Oeste. Veterano da 2ª Guerra, pingou de emprego em emprego com mulher e filha, primeiro no Texas, depois Califórnia, Estado de Washington e, finalmente, Havaí. Sua filha, Ann Dunham, manteve essa busca por uma reinvenção pessoal. O primeiro marido foi um queniano, pai de Obama, que a abandonou. O segundo era da Indonésia, para onde Ann se mudou com o filho Barack muito menino. Separada novamente, Ann morreu de câncer, aos 52 anos.
Criança, Obama viveu com a mãe na Indonésia, estudando numa escola internacional católica, depois numa islâmica. Ann não ligava para religião. Mas aí, com 13 anos, Obama quis estabilidade: adolescente, foi morar com os avós no Havaí. Para os colegas americanos, era, como se descreveria anos depois, “um menino magrelo com o nome engraçado”. Em seu livro, descreveu um envolvimento autodestrutivo com drogas - maconha, depois cocaína. À imprensa, os amigos do tempo disseram que Obama fumou, cheirou, mas não foi nada sério. Bom aluno, ganhou uma bolsa para a Universidade Colúmbia, em Nova York, onde estudou ciência política e relações internacionais. E, quando foi procurar emprego, escolheu um de assistente social em Chicago, no lado sul da cidade, conhecido pela influente comunidade negra.
Aos 22 anos, Barack Hussein Obama sentia-se um fruto de famílias em fuga que rejeitavam o passado. A seus olhos, nem os pais nem os avós foram felizes. E lá estava ele, um rapaz negro criado por brancos, chegando a um lugar novo. De volta ao Meio Oeste que seu avô abandonara, ele buscaria uma raiz, uma tradição. E duas pessoas o apresentaram a ela.
O primeiro foi Jeremiah Wright, pastor da Trinity United Church of Christ. Wright o ensinou sobre ser negro nos EUA, ofereceu uma base religiosa, apresentou Obama à comunidade e o influenciou na maneira de falar em público. A segunda pessoa foi sua mulher, Michelle. Com ela e os sogros, ele conheceu a vida de uma típica família estável da classe média negra. Já era este seu mundo quando se formou em direito, em 91, pela Universidade Harvard, considerada a melhor do mundo.
Quando, anos mais tarde, condenou a Guerra do Iraque, ele argumentaria com base nas conclusões que tirou da vida. Seus pais tentaram se reinventar abandonando as tradições e, no processo, perderam a própria identidade. A tradição é o que dá liga à sociedade. Perante a mudança, a tradição sempre resiste. Mudança, na história, vem a passos lentos. Para ele, há ingenuidade no ideal do sonho americano de que idéias, por si, causam grandes mudanças. Idéias não bastam. Barack Obama, como o descreveu Larissa MacFarquhar num perfil para a revista The New Yorker, “é profundamente conservador”. Democracia não seria simplesmente imposta num país onde ela jamais existira.
Obama é conservador na maneira de ver o mundo e a sociedade, mas um político que segue fielmente a tradição social da esquerda americana. Eleito em 1996 para o Senado Estadual de Illinois, propôs 233 leis sobre saúde pública (incluindo a tentativa de implantar um sistema universal, que foi rejeitado), 125 dedicando recursos para assistência social e 112 tratando de criminalidade, como programas de reintegração à sociedade, o alívio de penas para certos crimes e maior controle na venda de armas. Nas 823 leis que apresentou, mais da metade se inclui nesses três grupos.
No Senado dos EUA, onde atua desde 2005, se mostrou protecionista - vem de um Estado agrícola - e favorável a facilitar a vida dos imigrantes, mesmo os ilegais. É a favor do aborto, mas não rejeita de todo a pena de morte, que considera justa para os casos mais brutais, que choquem a sociedade. Votou a favor de planos de educação sexual e distribuição de contraceptivos para adolescentes, quer um projeto agressivo para cortar a emissão de carbono e deseja retirar as forças americanas do Iraque para investir na luta contra a Al-Qaeda no Afeganistão e Paquistão.
A campanha presidencial apenas começou. Não foi sem dor que ele renegou seu pastor, quase uma figura paterna, há um mês. Seu adversário republicano, John McCain, o atacará em sua disposição de negociar com ditadores, explorará sua pouca experiência em política exterior e tentará mostrar que, hábil com as palavras, Obama seduz sem substância. Também deve apresentá-lo como um radical da política negra. A proximidade com o pastor Wright torna a insinuação crível. A amizade com o casal Bernardine Dohrn e William Ayers, terroristas de esquerda nos anos 60, reforça a tese. Não bastasse, ainda há o fantasma de Tony Rezko, um de seus primeiros financiadores políticos, condenado em maio por corrupção.
A campanha presidencial de Obama é conduzida por um ex-repórter da editoria de política do jornal The Chicago Tribune, David Axelrod. Ele pretende driblar a discussão contando e recontando a história pessoal do candidato. Ao New York Times, explicou que “a história de Barack é a personificação de sua mensagem para o país, a de que com tenacidade podemos vencer as barreiras que nos dividem”. A candidatura, segundo Axelrod, é essencialmente uma aposta de que, mesmo lentamente, a história caminha para a frente e os EUA são, sim, capazes de eleger um presidente negro.
É só com sutileza que Obama trará a questão racial para a campanha. Tão logo ficou claro que seria o candidato, McCain o convidou para uma série de debates informais, ao vivo, perante grupos de eleitores em todo o país, como haviam combinado de fazer, em 1963, John Kennedy e Barry Goldwater. Obama disse que gostou da idéia, mas sugeriu que seguissem o modelo estabelecido, antes da Guerra Civil, por Abraham Lincoln e Stephen Douglas. Na verdade, são modelos iguais. Mas Lincoln foi o libertador dos escravos nos EUA. E um político de Illinois. Obama sublinha a idéia de ser sucessor natural do velho presidente.
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