quarta-feira, 18 de junho de 2008

Mataram três quilombolas

Abaixo uma matéria sobre os três jovens mortos no Rio depois de serem entregues a bandidos pelo exército brasileiro Antes um comentário meu que explica o porque do título do post. Abaixo reproduzo a nota de pé de página número 51 de minha dissertação de mestrado sobre quilombolas, onde falo da região onde aconteceu essa barbaridade como uma área de territorialização quilombola:
"[51] A melhor definição do conceito de Comunitas foi desenvolvida por Vitor Turner, para quem as estruturas representariam aspectos de permanência da autoridade de posição definida, das distinções de status e riquezas, da hierarquia e do conhecimento técnico, etc. Já na comunitas predominariam as relações pessoais, o intuitivo, a ausência de propriedade e de insígnia. Ou seja, a centralidade se encontra na noção de comunhão. Estruturas e comunitas são para o autor mecanismos invariantes, universalmente reconhecidos como essenciais e inseparáveis. Turner acredita que a sociedade vive uma permanente tensão entre o par estrutura/-comunitas. Para ele, a vida social necessita de participar de ambas. Ainda que, de acordo com a organização social, um grupo possa tender mais para uma do que para outra. Desta necessidade deriva a busca pela liminaridade ritual. Assim, os indivíduos que ocupam posições inferiores na estrutura social aspiram a uma superioridade simbólica no ritual, e os que estão em posições superiores podem aspirar à simbólica fraternidade universal da comunitas. Esta, portanto, é a organização social em que as normas éticas e jurídicas da sociedade são colocadas em contato com fortes estímulos emocionais. Dessa maneira pode-se entender o que disse Muniz Sodré a respeito da região da Praça Onze, na Pedra do Sal*, na Gamboa, cidade do Rio de Janeiro. “Saltam aos olhos a semelhanças com o Congo Square, de New Orleans. Por que uma praça? Bem, as esquinas, as praças constituem interseções, suportes relacionais, que concorrem para a singularização do território e de suas forças. Na praça, lugar de encontro e comunicação entre indivíduos diferentes, torna-se visível uma das dimensões do território que é a flexibilidade de suas marcas (em oposição ao rígido sistema diferencial de posições característicos do “espaço” europeu), graças à qual se dá a territorialização, isto é, a particularização da possibilidade de localização de um corpo (MUNIZ SODRÉ, 1988:137).
Dessa forma, a “África em miniatura”, expressão do sambista Heitor dos Prazeres em relação à Praça Onze permitiu catalisar o processo sociabilizante dos negros, sendo o berço do Samba, do partido alto, dos entrudos carnavalescos, das escolas de samba, das reuniões toleradas de candomblé; e por sua característica de liminaridade, recebeu a acolhida de intelectuais e alguns setores da burguesia carioca, contato que permitiu, a princípio, o surgimento do Choro e, posteriormente, da Bossa Nova. Processo parecido ocorreria no sul dos EUA em relação ao Jazz.
Para finalizar, em relação à Praça Onze, Sérgio Cabral (1996) afirma que ela ficava no centro da região ocupada por negros, na cidade do Rio de Janeiro: Morro da Favela, Morro de São Carlos, Rio Comprido, Catumbi, Cidade Nova, Estácio de Sá, Saúde, Gamboa, Santo Cristo. Por fim, outra característica interessante da Praça Onze, segundo Cabral, era a convivência na mesma área física entre negros e judeus (outro grupo bastante importante dessa região), ainda que o autor estranhe a ausência mútua de manifestação entre estes dois grupos, como se ambos fossem invisíveis um para o outro.
* Atualmente os moradores da Pedra do Sal reivindicam através do INCRA a delimitação territorial dessa como Comunidade Remanescente de Quilombo, tendo, aliás, o RTID já se iniciado. A leitura do subcapítulo denominado “Do candomblé ao Samba”, da obra de Muniz Sodré, já é em si mesmo um ótimo argumento a favor desse pleito, pois demonstra que essa foi e é uma área de resistência com presumida ancestralidade negra, o que transparece em sua rica história cultural. "

Saiba quem eram os três jovens do morro da Providência mortos no fim de semana
André Naddeo
A reportagem do UOL conversou com parentes e amigos dos três para saber um pouco mais sobre eles. Leia abaixo:

  • Arquivo pessoal
David Wilson Florêncio da Silva, 24, como a maioria dos moradores da Providência, teve uma infância difícil. Ainda bebê, foi abandonado pela mãe. Como o pai já era falecido, acabou criado pela avó materna, dona Benedita Florêncio. "Ele sempre me levava ao médico, fazia tudo por mim", conta, segurando as lágrimas.

A relação com a avó sempre foi estreita. "Ele levava os doces feitos por ela e vendia na escola quando garoto", lembra a amiga Deyse Lay, 30, que o conheceu na 5ª série do ensino fundamental. "Era um bom rapaz, eu garanto, sempre tive amizade com ele", diz.

Desde cedo, além da avó Benedita, David tinha uma outra paixão: o futebol. Mais especificamente o seu clube de coração, o Flamengo. "Ele era apaixonado, ia sempre que podia ao Maracanã comemorar a vitória do time", conta a avó. Festa, aliás, era com ele mesmo: "Era uma pessoa alegre, divertida. Gostava de reunir os amigos sempre. Ele queria comemorar tudo. Tudo era na base de festa", conta a amiga Deyse.
    Já adulto, usou o todo conhecimento futebolístico adquirido para dar aula de futebol para crianças carentes do morro da Providência. Mas como o trabalho era voluntário e o dinheiro, curto, David teve que interromper os estudos. Em 2005, ele largou o 1º ano do ensino médio para trabalhar.

    Em Gamboa, bairro da região central do Rio, conseguiu emprego em uma obra como auxiliar de pedreiro. Em 2008, porém, o torcedor flamenguista conseguiu voltar à escola. Trabalhava durante o dia e fazia o supletivo à noite. Há cerca de uma semana, conseguiu vaga nas obras de remodelagem de casas do programa Cimento Social, principal motivo da ocupação do Exército na Providência. Começaria na última segunda-feira.

    Dois dias antes, entretanto, David foi assassinado por membros de uma facção rival do morro da Mineira enquanto cumpria o segundo ano do ensino médio, sonhava em fazer faculdade de educação física e planejava o casamento. "Ele não era envolvido com o tráfico, ele iria começar a trabalhar. Isso tudo é um absurdo", conta a noiva Gisele Pereira de Lima, 19.

  • Arquivo pessoal
Wellington Gonzaga Costa, 19, apesar de nunca ter trabalhado no ramo, também iniciaria na última segunda-feira trabalho como pedreiro no programa Cimento Social, razão pela qual os militares ocupam o morro da Providência. "Ele estava bastante ansioso", conta Débora Cristina Gonzaga, 32, prima.

À noite, o jovem trabalhava como entregador de pizza dentro da própria comunidade. Era bastante amigo de David Florêncio, que o apresentou à namorada Tamires. "Ele gostava de sair sempre com ela. Gostavam de shopping e cinema. Ele a tratava muito bem, tinha foto no Orkut [site de relacionamentos da Internet] dele fazendo coração para ela. Era uma pessoa querida", conta Deyse Lay, 30, que também o conheceu por intermédio de David.

Vascaíno de coração, acompanhava o time de perto e rivalizava com o amigo David, flamenguista. "Quando tinha clássico do [Campeonato] Carioca, os dois saiam com suas camisas e ficavam apostando quem iria ganhar", conta a prima Débora.

Wellington, que nunca tinha dado muita atenção aos estudos, estava correndo atrás do tempo perdido. Cursava a 2ª série do ensino fundamental, em processo de alfabetização.

  • Arquivo pessoal
Marcos Paulo Rodrigues Campos, 17, era o mais novo dos jovens assassinados no morro da Mineira. E o que tem a história mais irônica: seu sonho, desde garoto, foi ingressar no Exército. "Ele sonhava em fazer logo 18 anos para poder se alistar, ele queria usar farda e tudo o mais", relembra a mãe, Maria de Fátima Barbosa, 48, agora indignada ao ver que, supostamente, seu filho foi levado justamente por militares e entregue a uma facção criminosa.

Desde cedo, para seu próprio sustento e dos seus outros seis irmãos, ajudava a mãe descarregando caminhões de areia em obras dentro da própria comunidade da Providência. "Ele arrumava um dinheirinho com isso, né. A gente não tinha dinheiro, sempre passamos por bastante dificuldade", conta Maria de Fátima.

O adolescente flamenguista cursava a 7ª série do ensino fundamental. Gostava de namorar. Mas sem compromisso sério. "Ele não gostava de namorar sério, para ele, o que importava era aproveitar a vida", conta a mãe.

O futebol também era motivo de descontração. Reunir os amigos para uma partida na Praça Américo Brum, mesmo local onde foi abordado e levado pelos militares, era algo comum, quase diário.

"Ele era um adolescente 'crianção'. Lá em casa está um vazio no nosso coração, uma dor imensa, todo mundo calado. Lá em casa era uma alegria", conta Maria de Fátima, não contendo as lágrimas. "Se eu pudesse eu iria junto. Mas eu quero só guardar coisas boas dele, não quero pensar que ele morreu assim brutamente. Prefiro lembrar do sorriso dele."

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