Dimmi Amora e Vera Araújo
Moradores de 101 comunidades carentes da capital rompem a lei do silêncio e ganham voz numa pesquisa que, entre outros resultados, quebra mitos — como o de que o veículo blindado da polícia, o caveirão, usado em operações nas favelas, não é bem aceito pela população.
Também foram postos à prova temas como a legalização de drogas leves e a adoção da pena de morte no Brasil, rejeitadas pela maioria (respectivamente, 60,5% e 54% dos entrevistados). Já a intervenção das Forças Armadas nas comunidades foi aprovada pela maior parte (48,9%) das 1.074 pessoas ouvidas.
A grande surpresa foi a aprovação do blindado (por 48% dos moradores, enquanto 29% se disseram contrários à sua utilização). O percentual de apoio é maior na Zona Oeste (61,4%), entre homens (53,4%), os mais jovens, os de menor renda e entre os analfabetos e com curso superior. Ele é menor na Zona Norte (33,6%), entre as mulheres, os mais velhos, quem tem maior renda e aqueles com escolaridade entre 1ae 4aséries.
Responsável por encomendar o levantamento, feito pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), o coordenador da Central Única das Favelas (Cufa), Celso Athayde, se surpreendeu com o alto índice de aprovação do caveirão. O veículo, usado pela polícia do Rio desde o início da década, sofre forte rejeição dos movimentos de defesa dos direitos humanos.
— Foi uma grande surpresa. Acreditei que a condenação seria muito maior. No entanto, a partir dessa pesquisa, passei a acreditar que o problema não está no caveirão, que, lógico, tem que proteger a vida dos agentes da lei e da ordem. O problema está em quem o conduz, quem está dentro dele. A questão central está na real intenção dos policiais na hora da incursão — afirma Celso
Morador: blindado valorizou imóveis
Morador há 38 anos de uma favela da Zona Oeste, Francisco (nome fictício), de 82 anos, considera o caveirão a principal arma da polícia para impor a ordem nas comunidades dominadas pelo tráfico: — Quando me mudei para cá, um apartamento valia R$ 30 mil. Há cerca de 20 anos, o tráfico se instalou e, a partir daí, os preços despencaram.
Tinha gente que conseguia no máximo R$ 5 mil, quando não largava tudo para fugir dos bandidos. Hoje, com a entrada do caveirão, os imóveis voltaram a ser valorizados: um apartamento de três quartos custa R$ 10 mil.
A monitora Vânia Márcia Gomes da Silva, de 43 anos, que, em 24 de maio de 2006, aos gritos, conseguiu cessar o tiroteio entre policiais e traficantes, quando o ônibus escolar em que viajava ficou no meio de um fogo cruzado na Rocinha, discorda de Francisco. Para ela, só os policiais ficam protegidos dentro dos blindados.
— Sou contra o caveirão, pois a bala sempre sobra para o inocente. Eles atiram lá de dentro e a gente nem vê quem é o policial — justifica Vânia.
Como chefe da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), uma das forças policiais que mais utilizam os blindados em incursões nas favelas, o delegado Rodrigo Oliveira comemora os resultados do levantamento.
Ele ressalta que, pela primeira vez, uma pesquisa ouviu realmente os moradores. Segundo o delegado, os entrevistados entenderam a importância do veículo para a proteção dos policiais: — O blindado é uma tendência mundial. Acabei de chegar do Haiti e presenciei que é comum, nas operações em uma única favela, utilizarem de 25 a 33 blindados. Eles são empregados inclusive no patrulhamento das ruas. Esses carros diminuem o risco inclusive de bala perdida, pois só são usados para o transporte de policiais — garante Rodrigo.
O fato de o caveirão ter maior índice de aprovação na Zona Oeste (61,4%) pode ser explicado, segundo o coordenador da Core, pelo fato de nessa região a maioria das favelas ser plana. Nesse tipo de terreno, é mais fácil manobrar o blindado e ele ganha maior agilidade.
O coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública, mestre em psicologia social, enfatiza a importância de pesquisas que ouçam mais a comunidade carente. Segundo ele, o único parâmetro usado pelas secretarias de Segurança são os boletins de ocorrência, que acabam sendo frios e não refletem a realidade das vítimas. O oficial também se surpreendeu com o nível de aprovação do uso do caveirão.
— A população está entendendo a necessidade do blindado. O que eu sou contra, particularmente, é o uso da caveira com o punhal atravessado como símbolo do blindado do Bope, mas a proteção do policial é importante, pois ele fica muito vulnerável nessas áreas conflagradas.
No perfil dos pesquisados, foi encontrado apenas 1% de analfabetos.
Já outros 9% afirmaram ter curso superior ou pós-graduação. Dos entrevistados, quase metade (49,4%) disse ter renda de menos de dois salários mínimos, enquanto apenas 1,8% informou ter rendimentos acima de dez salários. O número de evangélicos (30%) é bem superior à média do país (18%) e o de católicos (45%), menor (no Brasil, o índice é de 74%).
Rossino Castro Diniz, presidente da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio (Faferj), diz que a pesquisa não o surpreende. Segundo ele, até mesmo nos temas mais polêmicos, ela reflete com clareza o que pensam os moradores das favelas sobre a maior parte dos assuntos.
A rejeição dos moradores à legalização das drogas não surpreendeu Flávia (nome fictício), de 48 anos, moradora de uma favela da Zona Norte.
Ela diz que vê a destruição diária de famílias e pessoas por causa do uso de drogas e que tem a mesma opinião da maioria, que reprova a liberação: — Essa é uma pergunta que nem deveria ser feita. Liberar drogas é um absurdo. É colocar fogo no mundo.
A cientista social Sílvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Candido Mendes, diz que a resposta à questão da legalização das drogas segue a tendência nacional. Ela alerta, no entanto, para o alto índice de “não resposta” (não responderam 7,4% e 11,9% disseram não ter opinião formada sobre o tema).
Os moradores mostram pouca confiança na polícia. Pouco mais de um terço diz que já ouviu falar de envolvimento de policiais com traficantes de suas comunidades. A utilização das Forças Armadas para combater o crime organizado é aprovada pela maioria dos entrevistados, mas 29,8% se dizem contrários. A maior parte rejeitou a pena de morte para crimes hediondos. No entanto, 28,9% aprovaram a medida.
A maioria dos entrevistados (73,2%) concorda que a sociedade tem uma visão distorcida das favelas, por considerá-la um reduto de marginais.
Mas 7,5% acham que essa visão é correta. Quase 10% dos entrevistados dizem não se sentir integrante da sociedade. Outros 28,7% afirmam que só se sentem integrantes em parte e 60,2% se sentem completamente integrados.
Para o presidente da Faferj, isso reflete a forma como os governo trata quem mora nas favelas.
— Se temos um governador que diz que as mulheres na Rocinha são fábricas de bandidos e um secretário de Segurança que afirma que um tiro em Copacabana é diferente de um tiro na Favela da Coréia, fica difícil as pessoas se sentirem incluídas
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