domingo, 23 de março de 2008

O racismo nas ordens religiosas mineiras da época do ciclo do ouro

Excelente texto de Sebastião Nunes publicado hoje no Jornal O Tempo. Aliás se algum amigo leitor tiver o livro do Fritz do qual ele comenta, me empreste por favor.

Só enquanto recupero o fôlego

Depois de perambular pelo passado nas últimas crônicas, tendo vivido há 100, 50 e 10 mil anos atrás, volto hoje ao presente, antes de mergulhar novamente nos tempos antigos e, já agora, nas civilizações de que surgimos, começando pela Grécia de Homero. E tudo por causa de mais um livro que estou lendo.

Minha primeira lembrança de Fritz Teixeira de Salles é bastante confusa. Acho que fui levado à sua presença por Affonso Ávila, creio que no apartamento carioca de Jacques do Prado Brandão. Foi isso mesmo? Não sei. Fritz sofrera um derrame, estava se recuperando, lembro que a conversa foi difícil, especialmente pra mim, que o via pela primeira vez, e bastante doente. Fritz é nome maior da cultura mineira do século XX, mas ficou um tanto esquecido, abafado pelo foguetório dos intelectuais de Rio e São Paulo, sempre dispostos a se exibirem sob todos os holofotes. Sobre Affonso não é preciso dizer muito, exceto que é um dos três poetas brasileiros vivos essenciais, em pé de igualdade com Augusto de Campos e Décio Pignatari. Ah, sobre Affonso é preciso dizer também que é referência obrigatória para qualquer estudo ou pesquisa séria sobre o barroco mineiro.

Ficarei hoje com Fritz e seu estudo sobre os primórdios de nossa civilização, cujo título é exatamente "Associações Religiosas no Ciclo do Ouro". A primeira edição é de 1963, a que estou lendo, emprestada por Jaime Prado Gouvêa. A segunda foi lançada este ano, 45 anos depois. Que buraco fundo na cultura de um povo! E que Affonso me perdoe, pelas heresias que certamente escreverei.

AS MINAS DE OURO

Fritz estuda as irmandades religiosas em Ouro Preto, Mariana, São João del Rei e Sabará, que para ele resumem satisfatoriamente o ciclo colonial. Seu objetivo, exposto claramente no início da obra, é discutir as relações de poder dentro e fora delas. O enfoque é econômico e social. O interesse é saber quem era quem, quanto poder tinham as irmandades e qual a sua influência na sociedade da época. E vai fundo na pesquisa. Como ele mesmo escreveu, "durante os últimos quatro anos, vimos, lemos, fotografamos ou manuseamos cerca de cem livros de compromissos", documentos que as irmandades eram obrigadas a remeter a Lisboa, para aprovação da Coroa. Como não sou historiador, farei apenas um breve apanhado do que esses textos apresentam de mais curioso, pitoresco ou rico de interesse, ainda hoje.

Como ponto de partida, é importante dizer que Fritz determinou cuidadosamente os períodos de fundação das corporações, estudou seus estatutos, analisou seus objetivos e mostrou como brancos, pardos, pretos e pretos crioulos (negros nascidos no Brasil) podiam participar de cada irmandade, dividindo-as por período e área de atuação.

Por exemplo, ressalta os seguintes aspectos decisivos: "

1. O preconceito racial é rigoroso e este fato obriga os homens de cor a se reunirem em irmandades próprias, o que implica no mesmo movimento de aglutinação dos outros grupos brancos, aristocratas e comerciantes. Aliás, os que se unem em primeiro lugar são os brancos, os quais, não permitindo a entrada de pretos, criam a motivação para que estes organizem suas irmandades.

2. As corporações, em geral, desempenham função assistencial e previdenciária aos seus filiados, chegando mesmo a emprestar dinheiro a juros.

3. As irmandades são, por isso, regidas por princípios estatutários de disciplina coletiva bastante rígida."

PRECONCEITO ÀS CLARAS

No compromisso da irmandade do Senhor dos Passos (1721), da freguesia de São José do Rio das Mortes, lemos:

"Os irmãos que se receberem hão de ser sem nenhum escrúpulo, limpos de geração, ou sejam nobres, oficiais e assim de não terem uns e outros raça de judeu, ou de mouro, ou de mulato, ou de novo convertidos de alguma nação infecta."

Nos estatutos da Ordem 3ª de São Francisco (Mariana, 1765), consta:

"Se é branco legítimo sem fama ou rumor de judeu, mouro ou mulato, carijó ou outra infecta nação e o mesmo se praticará com a mulher, sendo casada."

Mais adiante, cita Diogo de Vasconcellos: "Na Vila do Carmo, por exemplo, a Matriz pertencia a Irmandade do Sacramento, em cujos estatutos primitivos se lê: Não podem entrar nesta Irmandade judeus, mulatos e hereges".

LUTA DE CLASSES

Também a disputa econômica era feroz nas irmandades. O empréstimo de dinheiro a juros era comum, inclusive ao próprio governo. Numa carta transcrita pelo historiador Francisco Antônio Lopes, e citada por Fritz, o capital general da capitania pede urgência num empréstimo, "debaixo de caução de ouro em pó", empréstimo que é concedido no mesmo dia.

Se um candidato a irmão se achava "em artigo de morte", isto é, em risco de vida, o Estatuto da Ordem 3ª de São Francisco determinava que "que lhe não lance o hábito, nem professe, sem dar primeiro de esmola cinqüenta oitavas de ouro".

"Como se sabe", comenta o historiador, "a irmandade do Carmo é uma ordem poderosa e importante". No capítulo quarenta do Estatuto, podemos ler:

"Pagará cada irmão uma oitava de ouro em cada ano; o Prior de sua mesada cento e cinqüenta mil réis; o Superior setenta e cinco e os mais mesários vinte oitavas cada um. A Irmã Prioresa cinqüenta oitavas. A Superiora vinte e cinco. A Irmã Zeladora doze oitavas e meia". Prossegue Fritz: "A importância de cento e cinqüenta mil réis como mesada do Prior é uma exorbitância para a época. Somente um indivíduo realmente muito rico poderia ocupar tal cargo".

Não é sem motivo que Minas sempre foi considerado o Estado de mais forte preconceito racial e mais profundamente dedicado à usura no país, tema genialmente satirizado por Affonso Ávila em vários momentos de sua poesia. Há quem diga que as coisas mudaram. Talvez, talvez, talvez - mas não muito.

Fonte: http://www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdEdicao=867&IdColunaEdicao=5275

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