sexta-feira, 19 de junho de 2009

65 anos

Para não deixar batido. Hoje faz 65 primaveras do nascimento de Chico Buarque de Holanda. Ou seja, entre fins de maio e fins de junho de 1944, dois fatos marcantes o nascimento de minha progenitora e de Chico.
Bom para marcar a data um artigo acadêmico escrito por uma fã cinco anos atrás, quando o blue-eye completou 60 anos.


O samba da minha terra
Ciência Hoje - Dez/2004
Música e Literatura
Eneida Maria de Souza (*)
Durante a ditadura militar brasileira, compositores e artistas desempenharam um papel relevante na defesa dos ideais de liberdade e de cidadania.A análise da obra e da trajetória profissional de Chico Buarque de Holanda, um dos mais importantes nomes da música popular, recupera esses momentos de crise política, e presta homenagem ao compositor pelos seus 60 anos.
A música popular brasileira, na sua complexidade conceitual, atingiu o prestígio que tem hoje graças à atuação dos compositores representativos dos anos 60, de nível universitário, e com forte engajamento social e político. Em consonância com a revolução musical instaurada pela bossa nova, no final dos anos 50, inserida no contexto das mudanças realizadas pelo governo - 1956 a 1961 - do presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), delineia-se no país um desenho cultural e político de dimensão significativa para a compreensão do imaginário da época.
Embora o samba tenha exercido, em períodos anteriores, papel relevante para a legitimação dos conceitos modernos de nacionalidade e de identidade popular, articulando-se em torno de compositores de classes sociais distintas, somente mais tarde é que esse papel foi devidamente estudado.A retomada da linha evolutiva da música popular brasileira resultou do diálogo iniciado entre a classe intelectual e a classe artística, que ocorreu de modo incipiente nos anos 20-30 e teve sua efetiva realização nos anos 60-70.Chico Buarque de Holanda conversa com o samba urbano de Noel Rosa, assim como Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros mesclam as inovações da música internacional aos ritmos nacionais. Motivados pela lição revolucionária da 'batida' de João Gilberto, das variações jazzísticas de Antônio Carlos Jobim (1927-1994) e da poética de Vinícius de Moraes (1913-1980), aquela nova geração de artistas-intelectuais exerceu um papel de destaque na consolidação da música popular contemporânea.Como representante dessa classe de compositores, a escolha recaiu em Chico Buarque, não só pelo valor de sua obra, mas por estar o Brasil comemorando os seus 60 anos de idade.
Com ele estariam contemplados outros artistas dessa época, igualmente defensores de princípios de cidadania e liberdade assumidos na luta contra o governo ditatorial instaurado em 1964. A função que a canção popular exerce hoje como formadora de opinião pública decorre, em grande escala, da posição mantida por Chico Buarque ao longo de sua trajetória profissional, na condição de pensador - e de inventor - da cultura nacional. Como motivo condutor desta proposta de análise, será enfocada a apropriação da música como antídoto e saída para os males da nação, tendo como núcleo a canção Paratodos, homenagem feita por Chico Buarque aos compositores brasileiros.
O meu pai era paulista / meu avô, pernambucano / o meu bisavô, mineiro / meu tataravô, baiano / meu maestro soberano / foi ant0nio brasileiro / foi antonio brasileiro / quem soprou esta toada / que cobri de redondilhas / pra seguir minha jornada / e com a vista enevoada / ver o inferno e maravilhas / nessas tortuosas trilhas / a viola me redime / creia, ilustre cavalheiro / contra fel, moléstia, crime / use dorival caymmi / vá de jackson do pandeiro / vi cidades, vi dinheiro / bandoleiros, vi hospícios / moças feito passarinho / avoando de edifícios / fume ari, cheire vinicius / beba nelson cavaquinho / para um coração mesquinho / contra a solidão agreste / luiz gonzaga é tiro certo / pixinguinha é inconteste / tome noel, cartola, orestes / caetano e joão gilberto / viva erasmo, ben, roberto / gil e hermeto / palmas para todos / os instrumentistas / salve edu, bituca, nara / gal, bethania, rita, clara / evoé, jovens a vista / o meu pai era paulista / meu avô, pernambucano / o meu bisavô, mineiro / meu tataravô, baiano / vou na estrada há muitos anos / sou um artista brasileiroUm artista brasileiro
Em 1993, a canção Paratodos vem selar a linha genealógica instaurada por Chico diante dos pais legítimos e pais musicais: trata-se de uma toada homenagem aos personagens que integram a tradição da música popular. A letra contém uma bem-humorada saudação à música produzida em todo o território nacional, justificada pela origem múltipla do compositor, que se nomeia filho de paulista, neto de pernambucano, bisneto de mineiro e tetraneto de baiano. Partidário do conceito de música popular que privilegia o aspecto nacional em sua heterogeneidade - uma proposta distinta da modernista -, o compositor considera as manifestações locais como diferenças que se suplementam ao conceito de nação.A herança musical completa a genética, por reunir, na figura do "maestro soberano", Antonio Brasileiro (Tom Jobim), o nome e a função próprios à gestação musical do compositor brasileiro, inserido na tradição do samba, do chorinho e da bossa nova. O artista nasce do duplo poder de Antonio Brasileiro, a quem são atribuídas as funções de iniciador, maestro e legítimo representante da música popular brasileira: "O meu pai era paulista/Meu avô, pernambucano/O meu bisavô, mineiro/Meu tataravô, baiano/Meu maestro soberano/Foi Antonio Brasileiro."
A leitura da música popular sob esse ângulo esclarece não só a reflexão sobre a sua tradição como a discussão sobre questões de identidade. O músico e crítico José Miguel Wisnik, em A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil, aborda a presença, em Paratodos, de vários pais, entre eles o pai paulista, o sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), "autor de Raízes do Brasil, remetendo a toda uma linhagem de fundações colhida nessa toada serenada". À herança genética se acrescentam a livresca e a intelectual, responsáveis por um pensamento moderno e canônico sobre a identidade brasileira.
Nos anos 30, o samba carioca "começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade", como afirma o antropólogo Hermano Vianna, em O mistério do samba, ao relegar os demais gêneros regionais. Tal atitude respondia pelo projeto de modernização e de nacionalização da sociedade. O mesmo não se verifica na posição de Chico Buarque em Paratodos, ao deslocar o samba de seu lugar anterior, de origem negra e carioca, e alçá-lo a símbolo de nacionalidade. Ao optar por compor uma toada, cantiga popular, de melodia simples e não circunscrita a uma região específica, o compositor dirige a saudação aos intérpretes de vários ritmos nacionais, do samba ao rock, e confirma a natureza heterogênea, híbrida e mestiça da música popular, avessa a critérios de pureza criativa ou de essência étnica.O mesmo não se dá com o Samba da bênção, de Baden Powell (1937-2000) e Vinicius de Moraes, modelo musical de Paratodos, composto nos anos 60. Nesse samba, é saudada a comunidade de compositores negros, homenagem que a bossa nova presta aos seus precursores e à tradição musical. Nas palavras da socióloga política Maria Alice Resende de Carvalho, citada pela psicanalista Maria Rita Kehl, em Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi, essa comunidade não era brasileira, mas carioca, tendo alcançado o status brasileiro a partir das palavras de Vinicius, que se posiciona como "o branco mais preto do Brasil".
Eleger Tom Jobim o "maestro soberano" é ainda legitimar a filiação à bossa nova, representada por um de seus maiores símbolos, além de colocá-la como marco revolucionário da música brasileira em todos os seus aspectos. Por ocasião dos 90 anos do arquiteto Oscar Niemeyer, em 1997, Chico Buarque, em texto de homenagem, reitera as afinidades eletivas com Tom Jobim e as estende ao arquiteto. Ao sentimento de decepção do compositor por não ter morado em casa projetada para o pai por Niemeyer se mescla sua dívida diante da profissão de arquiteto, por não ter concluído o curso. Nesse texto, Niemeyer e Tom Jobim são evocados como símbolos do desejo de perfeição buscado pelo artista, aliando o sonho do arquiteto à música.
O livro do jornalista Fernando de Barros e Silva, Chico Buarque, recupera esse texto e o elege como abertura do ensaio. A passagem citada é retirada daí: "Quando minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar."A escolha do precursor, assim como a linha evolutiva seguida por ele, insere Chico na mesma tradição de Caetano Veloso, representada pela bossa nova, embora tenham preferido eleger pais e caminhos diferentes. As distinções entre eles tornam-se mais visíveis por ter o compositor nomeado João Gilberto como seu precursor, afinidade que permite desenhar poéticas próprias e justificar posições. Em ambos persistem a intenção de legitimar influências e o propósito de assumir o pertencimento (o sentimento de fazer parte de) a um país inventado pelas suas canções.
A admiração de Chico Buarque por Antonio Brasileiro reside na defesa de uma estética pautada pelo lirismo, pelos temas amorosos e pela harmonia musical que se apropria das imagens e dos sons da natureza sob a forma de metáforas nacionalistas. É brasileiro o tom, revolucionária a urgência em preservar o desgastado sentimento de nação, através de resíduos da voz inaugural dos pássaros. O primeiro encontro entre eles talvez tenha sido com Sabiá, de 1968, nova canção do exílio que, durante o Festival da Canção, foi considerada distante dos ideais políticos do momento.Concorrendo com a politizada Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, Sabiá foi a escolhida e recebeu homérica vaia.O canto melancólico do exílio não correspondia ao tempo marcado por gritos e mordaças causados pela repressão.
O recado era sofisticado, tanto no nível melódico quanto textual, tornando-se incompreensível para os ouvidos da opinião pública, voltada para o estilo eloqüente das canções próprias ao ambiente espetacular dos festivais. A letra denuncia, em tom lírico, o silêncio imposto pela censura, pela evocação da paisagem emudecida do país das palmeiras. A emergência do canto e da voz "da sabiá" é uma metáfora da expressão artística reprimida: "Vou voltar/Sei que ainda vou voltar/Para o meu lugar/Foi lá e é ainda lá/Que eu hei de ouvir cantar/Uma sabiá."O meu samba é uma correnteO poder atribuído à música em Paratodos refere-se ao seu valor de antídoto, capaz de curar a humanidade de todos os males, motivo recorrente na obra de Chico Buarque. A função libertária da música se anuncia desde sua primeira canção, Tem mais samba, de 1965, em que ele afirma que, "se todo mundo sambasse, seria tão fácil viver". Mas a trajetória do artista, no empenho de ler a realidade pela mediação do discurso musical, passa por transformações e acarreta mudanças no tratamento desse discurso. O período vivido sob repressão política abala o impulso revolucionário do samba, como em Essa moça tá diferente, Corrente e Agora falando sério, notando-se que a ênfase no recurso auto-reflexivo e metalingüístico de sua obra contém uma leitura alegórica e denunciante do momento histórico:
"Agora falando sério/ Eu queria não cantar/A cantiga bonita/ Que se acredita/Que o mal espanta/Dou um chute no lirismo/Um pega no cachorro/E um tiro no sabiá/ Dou um fora no violino/Faço a mala e corro/Pra não ver banda passar."
Em Paratodos, a mensagem musical retirada dos intérpretes nacionais atua em todos os sentidos, ultrapassando o auditivo, uma vez que o seu consumo antropofágico se reverte em força positiva e em experiência de vida. A formação do artista se vale do exemplo da música, a ponto de se redimir dos males pelo exercício salutar da profissão. Na sua ação catártica, propicia ao outro a vivência da tristeza e da alegria, como prova do valor a ela atribuído. Seguindo o modelo das cantigas populares que se revestem de lição exemplar, o narrador-artista dirige-se ao público para aconselhá-lo, cumprindo missão instrutiva, comum aos repentistas de feiras nordestinas:
"Nessas tortuosas trilhas/A viola me redime/Creia, ilustre cavalheiro/Contra fel, moléstia, crime/Use Dorival Caymmi/Vá de Jackson do Pandeiro/Vi cidades, vi dinheiro/Bandoleiros, vi hospícios/Moças feito passarinho/Avoando de edifícios/Fume Ari, cheire Vinicius/Beba Nelson Cavaquinho."
Se a experiência da ditadura provocou sentimentos de mal-estar no artista e descrença na denúncia política pela música, em Paratodos o clima é de bem-estar e de purgação da dor pela alegria, em que se exercita o conceito de "gaia ciência", o "saber alegre" do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). A positividade existencial se nutre da experiência da dor, sem haver a superação de um pólo pelo outro. Os discursos do ressentimento, do luto e da melancolia são substituídos pela alegria restauradora. A abertura política no país havia sugerido o extravasamento de emoções, por meio do desfile alegórico e metafórico pela avenida do bloco da ditadura, em Vai passar (1984), em que se reforça o desejo de restauração da democracia e da vitória do samba popular.Semelhante posição se encontra na mais famosa canção do autor, A banda (1966), momento de exaltação do poder mágico e revolucionário da música. Durante a passagem da banda, vivencia-se, por instantes, a participação do homem comum, motivado a sair da alienação e a despertar para a ação. O tom lírico dessa composição, aliado à sua melodia contagiante, marcou o lançamento oficial de Chico Buarque no cenário nacional, embora tenha se convertido em argumento negativo no balanço de sua obra feito pela crítica.
O efeito catártico de Vai passar se realiza pelo desfile do "bloco do sanatório geral", anunciando o fim da ditadura militar.A década de 1990 registra o convívio dos países periféricos com o processo político e econômico da globalização, o que resultou não só no poder de igualar as qualidades locais com as estrangeiras, mas de ampliar as desigualdades, integrando globalmente as minorias. A imagem de nação moderna vai perdendo o seu traçado original, como na canção de 1998, Iracema voou, revisão do modelo romantizado da personagem Iracema, do livro de José de Alencar (1829-1877). O vôo de Iracema em direção à América, em busca de emprego, serve como emblema do destino de milhares de habitantes das nações periféricas, embalados pelo ritmo desconcertante do neoliberalismo. América refere-se ao nome do continente que se incrusta e se alegoriza no nome de mulher, Iracema, efetuando-se a inversão do sul pelo norte e a perda da identidade, causada pela falta de pertencimento ao lugar de origem.
Rompe-se o sentido positivo de Iracema representar o continente e se impor como mito fundador da colônia, como no romance romântico, ao ser relida na condição de desterrada na própria terra:
"Iracema voou/Para a América/Leva roupa de lã/E anda lépida/(...) Não dá mole pra polícia/Se puder, vai ficando por lá/Tem saudades do Ceará/Mas não muita/Uns dias, afoita/Me liga a cobrar:/É Iracema da América."
Um sambista que escreve livros
Se a força revolucionária do samba pode se realizar no espaço público da rua, da avenida, do carnaval ou das manifestações populares como as passeatas, os comícios das diretas, a literatura de Chico Buarque tem menor poder de "levantar poeira". Estorvo (1991), Benjamim (1995) e Budapeste (2003), além de Fazenda modelo (1974), compõem o seu acervo literário, mas se desvinculam - com exceção dessa primeira novela - de força alegórica e política, do apelo emotivo e sedutor das canções. O efeito truncado e labiríntico da narrativa atende ao descompasso das personagens com o mundo, à falta de saída dos problemas que atingem a sociedade pós-urbana e pós-moderna. A praça pública perde a função de ser o local de convivência humana e de palco de discussões, ao ceder lugar para a dispersão dos grandes centros urbanos, povoados pela fantasmagoria dos falsos encontros e de troca de experiências.
Com a ruína dos discursos utópicos, pelo esvaziamento do ideal de mudança alimentado pelo espírito revolucionário das décadas anteriores, Chico Buarque se reduplica em artista e escritor e abandona o palco da rua. O narrador de Budapeste é retratado na sua função invisível de ghost writer, o escritor fantasma que perde a identidade e se torna autor de livros que nunca escreveu. Por meio de um processo irônico, instaura-se o clima de estranhamento do escritor com a própria imagem.Chico Buarque é hoje um escritor pop, o duplo do artista consagrado, que, em virtude de seu temperamento e de estratégias mercadológicas, cultiva o sonho de se transformar em artista invisível, não cedendo à solicitação esquizofrênica da mídia. O compositor se esconde na pele do escritor, o artista detesta o palco e o espetáculo, alcança a popularidade por se mostrar avesso a ela e se consagra muito mais pela negação da celebridade. Ao contestar a participação mais efetiva na vida pública, furtando-se a emitir opiniões políticas ou se recusando a comparecer a sessões de homenagens, defende a vida privada como refúgio e se fecha para o populacho.
Comparece ao festival do livro em Parati, declarando: "Às vezes é bom que o escritor se exiba um pouquinho, que saia da toca e se reúna com outros escritores. Senão viram bichos esquisitos." Bicho esquisito ou não, Chico Buarque responde por uma participação efetiva na história da música popular brasileira e na defesa de uma imagem de país que ajudou a inventar com seus acordes dissonantes. Se os sonhos ficaram no meio do caminho, a intenção em realizá-los pela mediação da música permanece e se desdobra na revitalização de sua obra pelos futuros leitores.
SUGESTÕES PARA LEITURA
BARROS E SILVA, F.Chico Buarque. São Paulo, Publifolha, 2004.
CAVALCANTE, B.; STARLING, H. & EISENBERG, J.Decantando a república. Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira.Rio de Janeiro e São Paulo, Nova Fronteira/Faperj e Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
MATOS, C. N.; TRAVASSOS, E. & MEDEIROS, F.T.(orgs.) Ao encontro da palavra cantada. Poesia, música e voz. Rio de Janeiro, Sete Letras/CNPq, 2001.
VIANNA, H.,O mistério do samba. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/Jorge Zahar, 1999.(*)
Professora de Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais

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