sábado, 30 de maio de 2009

A negrinha e o negro no teatro

Como ando sem tempo, sem saco e sem inspiração. Quebro a regra deste ano no Blog de ser mais autoral e reproduzo aqui mais um excelente e ótimo texto dele, Alex Castro, do Blog Liberal, Libertário e Libertino.
Negrinha, de Monteiro Lobato (Cadernos de Teatro, 6)
Primeiro, uma rápida historinha dos negros no teatro brasileiro.

Durante a época colonial, o teatro brasileiro eram dominado por negros e mulatos. Talvez dominado não seja bem a palavra. Negros e mulatos trabalhavam com teatro porque ninguém mais queria fazê-lo: era o que sobrava para eles. Até 1794, a profissão de ator era considerada oficialmente "infame" pela lei portuguesa, barrando esses profissionais de uma série de atividades mais nobres e limitando seus direitos civis. Relatos de visitantes estrangeiros estão repletos de descrições sarcásticas, pejorativas e horrorizadas sobre as orquestras e companhias teatrais negras que, muito precariamente (segundo os padrões europeus), tentavam interpretar aqui os sucessos da cena metropolitana.
Finalmente, em 1808,
D. João VI traz não apenas as mudas do Jardim Botânico e os livros da Biblioteca Nacional, mas também o teatro. Agora praticado e prestigiado por brancos europeus, o teatro começa a perder sua pecha de amador, ridículo, mambembe - ou seja, coisa de preto - e vai vai adquirindo prestígio social. Logo, já é reconhecido como o único meio de comunicação de massa, talvez a manifestação artística mais importante, e elemento essencial na educação do povo e na formação da identidade brasileira. Finalmente, em 1838, de acordo com a opinião quase unânime de críticos, historiadores e dramaturgos, é fundado o Teatro Brasileiro com T e B maiúsculos - varrendo para baixo do tapete da história o teatro brasileiro que vinha sendo praticado, aos trancos e barrancos, por atores negros pelas últimas centenas de anos.
Preciso mesmo acrescentar que, nesse momento de prestígio máximo do teatro, os atores e músicos negros já tinham sido fisicamente expulsos do palco faz tempo? Enigma de Tostines: a profissão de ator era infame por ser profissão de negro ou era profissão de negro por ser infame? De qualquer modo, quando vira uma profissão digna, torna-se profissão de branco.
Ao longo do século XIX, época de maior prestígio do teatro nacional, apesar das muitas peças sobre a escravatura, os papéis de negros eram invariavelmente interpretados por atores brancos. No século seguinte, começa uma mudança gradual e muito lenta. Por exemplo, na década de 1940, quando Procópio Ferreira encena uma remontagem de "
O Demônio Familiar", de José de Alencar, peça sobre as diabruras de um moleque escravo, o papel-título foi interpretado por ator branco.

Entre a vasta bibliografia sobre as lutas dos atores negros por melhores papéis, recomendo o livro de Miriam Garcia Mendes, "O Negro e o Teatro Brasileiro" (acima, à direita). Existe até mesmo uma peça sobre isso: "A Revolta da Cachaça" (1957), de Antonio Callado, sobre um ambicioso ator negro que, em desespero pela falta de papéis dignos, e de tanto insistir com um amigo dramaturgo para que os escreva, acaba enlouquecendo de frustração e matando o amigo. A peça, apesar de fraca, é um aviso para todos os dramaturgos brasileiros.
Até hoje, é comum vermos grandes atores negros restritos a escravos domésticos, traficantes malvados e motoristas de madame, e sempre se perguntando:

Onde estão os grandes papéis negros?
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O monólogo "Negrinha", baseado
no conto homônimo de Monteiro Lobato, foi desenvolvido por Luiz Fernando Marques (direção), Renato Bolelli Rebouças (direção de arte) e Sara Antunes (atuação), todos membros do Grupo XIX de Teatro, e estrelado por essa última, numa performance sensacional.
A questão da cor acompanha toda a narrativa. A personagem título, chamada simplesmente de Negrinha, foi abandonada num casarão colonial depois da Abolição e, agora, sem entender o preconceito racial, tenta fazer sentido dessa complexa hierarquia de cores do Brasil. Assim, ela interage com a platéia, classificando cada pessoa por meio de uma cor ("esverdeado", "amarelenta", "chocolate", etc; eu fui "sem-cor"), ao mesmo tempo em que relembra episódios de sua vida de escrava.
No Rio, o Casarão de Austregésilo de Athayde (do lado da estação do Corcovado) foi especialmente escolhido por ser um típico casarão do século XIX. A peça inteira acontece em um único quarto, mobiliado de acordo com a época, com todos os espectadores sentados pelos cantos e pelo chão, e Sara Antunes, interpretando a Negrinha, andando por entre eles, fazendo perguntas, questionando-os, engajando-os. A única luz em cena são as velas que ela consistentemente acende e apaga, criando toda uma atmosfera fantasmagórica. A compreensível insanidade subjacente em sua voz (afinal, é uma menina abandonada sozinha em um casarão) só torna tudo ainda mais assustador. Tudo é perfeito: o texto, a atuação dialógica com a platéia, o jogo de luz, a atmosfera, a locação.
"Negrinha", com Sara Antunes, é uma experiência inesquecível e aterradora, remanescente de um horror que nós hoje mal podemos conceber, mas que devemos sempre tentar relembrar.
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Minha única criticazinha é política: apesar de eu não poder imaginar interpretação melhor que a de Sara Antunes, por que dar um papel bom desses para uma atriz branca quando atores negros ainda estão por aí lutando por qualquer migalha?

Reparem: não estou caindo no erro dos críticos que censuram Castro Alves por, entre outras coisas, "nunca adotar o ponto de vista negro" e "escrever sobre o negro por uma ótica branca", etc. Dado que Castro Alves era branco e não poderia metamorfosear-se em negro, o máximo que ele poderia fazer era mesmo escrever como branco e de um ponto de vista branco e, assim, dar sua importante contribuição artística e política à questão. (Sobre isso, vejam meu artigo Três Leituras de "Lúcia", de Castro Alves)
Do mesmo modo, não censuro Sara Antunes por ser branca. Não conheço o processo de elaboração da peça. Vai ver foi idéia ou iniciativa dela e, naturalmente, quis o papel principal para si, consciente de que daria um show. Nada a criticar nisso, e ela ainda mereceria o crédito por trazer o assunto à baila.
E, sim, o estranhamento causado por ver uma pequenina mulher branca articulando aquele discurso de negra escrava, ao mesmo tempo em que classifica todos na sala por sua cor, também ajuda a levantar a insólita questão racial no Brasil e o nonsense intrínseco das classificações raciais.
Mas, pelo menos no meu caso, uma das reflexões que esse estranhamento causou foi justamente lamentar menos um papel para uma atriz negra de talento.

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Então, se não cabe censura à cor de Sara Antunes (pois, afinal, isso seria cair da armadilha articulada pela própria montagem!), eu diria que essa questão deveria ter sido melhor abordada na divulgação da peça. Por exemplo,
em um texto que parece um press-release, escrito por Bianca Senna e publicado no Portal Literal, podemos ler:
"O monólogo também derruba o mito de que atores devem viver personagens com a mesma semelhança física, já que Sara é branca."
Oras, Bianca, isso tanto não é um mito, como é a regra. Nos últimos duzentos anos, pelo menos em relação a pessoas negras, a regra no teatro brasileiro é que os atores NÃO PRECISAM viver personagens com a mesma semelhança física - tanto que boa parte dos papéis de personagens negros foram vividos por atores brancos.

Ou seja, não estou censurando uma atriz branca, ainda mais do calibre de Sara, viver uma personagem negra, mas, por favor, não venha me dizer que isso é "quebra de mito". Pelo contrário, é a continuação de um "business as usual" centenário, é a confirmação de uma prática nascida do racismo e do preconceito.
Senão, daqui a pouco, o governo vai promover um homem a Almirante e ainda vai querer dizer que está quebrando o mito da discriminação sexual nas Forças Armadas! Ora, quebra de mito seria promover uma mulher. Promover um homem não é necessariamente sexista ou censurável, mas também não é quebra de mito alguma: é somente mais um Almirante homem em uma longa tradição de Almirantes homens.
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"Negrinha" já visitou mais de 15 cidades e
foi escolhida para representar o Brasil na Semana da Consciência Negra, na França.
O espetáculo fica em cartaz no Rio até esse fim-de-semana, 31 de maio, então vocês só têm mais duas apresentações pra ir, sábado e domingo, às 19h. Quem tem qualquer interesse sobre escravidão ou relações raciais no Brasil não deveria perder.
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Sobre a Série "Cadernos de Teatro"Estou começando a estudar teatro e resolvi aproveitar meus meses no Rio e em São Paulo para conhecer a produção contemporânea. Esses textos são minha tentativa de não só documentar as peças que assisti mas também de escrever mais criticamente sobre teatro.

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